E TE CHAMAVAM MARIA... – Texto 5


    O livro do Êxodo traz consigo o marco simbólico da formação do povo de Deus em sua aventura do Egito até a terra da libertação. É muito mais que uma história sobre Israel. Nosso primeiro olhar nesse livro se dirige ao episódio da sarça ardente (Ex 3,2-4) que é considerado uma teofania, uma manifestação da transcendência divina através do fogo[i]. Ele é também símbolo do Espírito Santo: “A chama, de fato, está fora de nós e, tal como a luz, não pode ser agarrada ou detida e, portanto, transcende-nos; e todavia atravessa-nos com seu calor e com o seu esplendor, faz-nos ver quem somos, envolve-nos e invade-nos. O seu caráter ‘inextinguível’ parece evocar a eternidade perfeita e a imutabilidade suprema de Deus” (Gianfranco Ravasi - “Os rostos de Maria na Bíblia” - Paulus).
   Esse simbolismo da sarça ardente foi assumido por diversos Padres da Igreja[ii] numa associação alegórica, metafórica, livre e criativa que reconhecia nesta sarça que queima sem se consumir, a virgindade perpétua de Maria[iii]: “Aquilo que era prefigurado na chama e na sarça foi abertamente manifestado no mistério da Virgem. Tal como no monte a sarça ardia e não se consumia, assim a Virgem deu à luz, mas não se corrompeu. Não te pareça inconveniente a similitude da sarça, que prefigura o corpo da virgem, a qual deu à luz Deus” (Gregório de Nissa, sec. IV, numa homilia do Natal).
   Uma outra dimensão simbólica explorada pelos Padres da Igreja diz que assim como Deus se revelou a Moisés através da sarça, em Maria, Deus se revela plenamente. Assim nos aproximamos desse mistério da Virgem com toda reverência que nos é possível, com os ‘pés descalços’ nesse solo santo[iv].
   Uma outra evocação mariana no livro do Êxodo se aplica a irmã de Moisés e Aarão que se chamava Maria. Sua presença ganha destaque no momento da conclusão da travessia do mar, onde entoa um hino exaltando os feitos do Senhor. É apenas um destaque modesto que quer sublinhar a presença desse nome que será dado a milhões de mulheres ao longo dos séculos e quase sempre em honra da mãe de Jesus. O próprio Novo Testamento (NT) está repleto de Marias. “’Maria’ significaria, por isso, ‘excelsa, elevada, augusta’, um título à primeira vista mais pertinente com a sua glória do que com a sua existência simples e quotidiana. Ser Mãe de Deus é, de fato, o sinal da sua grandeza: mas como canta no Magnificat, ela sabe que é precisamente no terreno de sua pobreza que Deus fez brotar a sua glória; é na sua humildade e entrega total a Deus que se realiza o acontecimento excelso da encarnação que torna  ‘a virgem de nome Maria’ (Lc 1,27) verdadeiramente ‘excelsa, elevada, augusta’. Entre parêntesis recordamos que, num jogo de palavras possível em hebraico, São Jerônimo forjará a definição do nome ‘Maria’ como ‘stilla maris’, isto é, ‘gota daquele mar’ infinito que é Deus, definição que por um erro copista se tornará a célebre stella maris, ‘estrela do mar’, entrada no magnífico hino mariano ‘Ave, estrela do mar’” (Gianfranco Ravasi - “Os rostos de Maria na Bíblia” - Paulus).
   Concluamos essa página com um dos versos do hino mariano da Igreja etíope (“Louvor de Maria”), do século VII: “Tu és o arbusto visto por Moisés no meio das chamas e que não se consumia, o qual é o Filho. Ele veio e habitou no teu seio e o fogo da sua divindade não consumia a tua carne. Orai por nós, Senhora!”.  


[i] Na animação da DreamWork “O Príncipe do Egito” essa teofania é mostrada com uma sutileza de indefinição onda voz masculina e feminina se misturam para comunicar o mistério divino.
[ii] Os chamados ‘Padres da Igreja’ (Patrística) são os teólogos dos séculos I até o IV, mas há quem estenda até o século VII da história da nossa Igreja. Eles foram os originadores de toda uma reflexão que nos ajuda a compreender os artigos de nosso credo, entre outras coisas...
[iii] Sem esquecermos a menção que se faz na terceira hora do Ofício da Imaculada, conforme estudamos num de nossos encontros do sábado, que aqui transcrevo: “Sarça da visão: a história de Moisés como libertador do povo de Israel que estava escravizado no Egito começa verdadeiramente com este fato: ao pastorear o seu rebanho viu uma sarça que não se consumia. Era um sinal de Deus que o chamava por meio desta visão e o constituía na grande missão de libertar o seu povo. Maria experimenta o maravilhoso em sua vida e foi convidada para uma grande missão”.
[iv] Também a arte herdou essa simbologia, Nicolas Froment (1475), compôs um quadro onde a figura de Maria com o Menino aparece nas pontas do arbusto envolto em chamas.