E TE CHAMAVAM MARIA... – TEXTO 11


         Nesse tempo de preparação ao Natal, retomemos as passagens proféticas que o próprio Mateus aplica a Cristo ao falar da anunciação a José sobre o mistério que envolve a sua noiva: “Tudo isto aconteceu para se cumprir o que o Senhor tinha dito pelo profeta: ‘Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho; e hão de chama-lo Emanuel, quer dizer: Deus conosco’”. O texto a que se refere Mateus se encontra em Isaias 7,14 e será retomado por Miquéias (5,2).
           É preciso que compreendamos bem o contexto em que o profeta anuncia o nascimento do Emanuel. Israel está para se aliar a outros povos contra a Assíria sob o reinado de Acaz. O profeta vai ao seu encontro e recomenda que enfrente a Assíria sem fazer coligações. Para atestar que o apoio divino se fará, ele oferece um sinal, pois Acaz já não acredita tanto assim no Senhor (ele tenta disfarçar o seu desconforto: cf. Is 7,1-17). Mesmo assim o profeta anuncia o nascimento de um menino que será um herói-salvador. Mas aquela que o conceberá é uma jovem mulher, não uma virgem, como anuncia Mateus. É possível indicar essa jovem como Abias, esposa do soberano, que até então não lhe tinha dado um herdeiro.  A fidelidade de Deus à promessa feita a Davi fará nascer Ezequias, que será um rei devoto e fiel.
       O nome Emanuel tem um caráter simbólico, para dizer que tal criança encarnará uma mensagem divina de esperança porque recordará com suas ações que Deus continua a acompanhar o seu povo, a apoia-lo e a salvá-lo. À criança se aplicará uma dieta especial, leite e mel. Esta também traz consigo um sentido simbólico que talvez revele um período de instabilidade ou insegurança momentânea. Talvez isso se refira à sua juventude e até o momento de tomar posse do trono, que coincide com a derrocada da Assíria e da Samaria, trazendo um tempo de paz. Assim podemos entender de que sinal está falando o profeta a partir de sua história contemporânea, mas é próprio da profecia delinear um caminho que se lança também para o futuro.
        O Deus conosco, revelado no nome do menino traz consigo um caráter particular do Deus de Israel, para quem um dia Davi desejou construir uma casa (cf. 2Sm 7,9.12). A casa que será construída consiste na dinastia davídica, com quem Deus caminhará a habitará no meio do seu povo. Deus sempre foi companheiro de viagem, desde a saída do Egito, assim podemos compreender porque Mateus se refere ao nascimento de Jesus como mesmo nome simbólico de Emanuel. Ele vê realizar-se a plenitude do significado daquilo que o profeta apenas intuiu.  
          A aplicação da profecia a Cristo traz consigo sua Mãe. Que diferentemente de outros nascimentos célebres (Isaac, Sansão, Samuel), não vem de uma mulher estéril, mas de uma virgem, pois o filho que dela nascerá não provem da carne nem da vontade do homem, mas de Deus. A profecia torna-se também mariana. É a ela que nos dirigimos com este fragmento egípcio do século III:

Ó Virgem Imaculada, mãe de Deus e cheia de graça,
Aquele que tu trouxeste é o Emanuel, o fruto do teu ventre.
Tu, ó Maria, excedes todo o louvor!
Eu te saúdo, Maria, mãe de Deus e glória dos anjos,
Porque tu superas em plenitude de graças os anúncios dos profetas!

O Senhor está contigo: tu dás à luz o Salvador do mundo.

E TE CHAMAVAM MARIA... – Texto 10


Abandonando o campo das comparações com personagens concretos, entramos agora, ainda no Antigo Testamento, algumas citações que foram aplicadas à Virgem Maria. É um modo de entendermos títulos e comparações atribuídos a Maria ao longo da construção desse edifício devocional. 
Em nossa ladainha, um dos títulos invocados para a Virgem, a chama de “Sede da Sabedoria”. De fato, no Antigo Testamento muitos textos identificam a sabedoria como uma mulher, por isso a tradição mariana aplica a Maria. É claro que tivemos aqui um longo processo de transferências ou passagens até desembocar em Maria. A própria Sabedoria foi identificada como Cristo, ao lado de Deus no ato criador (cf. Eclesiásticos 24) e também ao Espírito Santo, como o fez Teófilo de Antioquia e Ireneu de Lião. Para só depois chegar à Virgem, idealizada a partir desse lugar alto, como um trono.
O texto mais significativo e aplicado a Maria se encontra no livro dos Provérbios 8,22-31, numa espécie de auto apresentação. “O Senhor criou-me, como primícias das suas obras, desde o princípio, antes que criasse alguma coisa. Desde a eternidade fui formada, desde as origens, antes dos primórdios da terra... Eu estava com Ele como arquiteto, e era o seu encanto, todos os dias, brincando continuamente em sua presença; brincava sobre a superfície da Terra, e as minhas delícias é estar junto dos seres humanos” (Pr 8,22-23.30-31). Fala-se de sua união com o Criador de modo a referir-se a si mesma como uma emanação do próprio Criador. Conhecendo o seu íntimo, ela exerce uma função mediadora com o mundo criado.
No mundo simbólico que compreende o livro dos Cânticos dos Cânticos, que celebra o amor humano, para se chegar ao amor divino. A leitura mariológica que fazemos desse livro se aplica a pequenas partes do texto em seu aspecto simbólico que necessita de toda uma compreensão de aspectos da Revelação e da Tradição no contexto eclesial de todo um pensamento que foi se desenvolvendo ao longo da história. Não nos é possível passear por todo esse mundo simbólico e suas aplicações marianas: “Dados os limites da nossa exposição, não podemos seguir este itinerário interpretativo, repleto de todo gênero de presenças, desde as solenes às devocionais com degenerações petistas, mais interessantes para o do folclore religioso do que para a história da espiritualidade. Cada acontecimento da vida de Maria e cada seu atributo teológico são procurados no texto do Cântico e seus símbolos” (Gianfranco Ravasi – Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus).
A aplicação mais comum feita no Ocidente é da relação do esposo e da esposa do Cântico, lidos como Cristo e Maria, Deus e Maria, o Espírito Santo e Maria. A imaculada Conceição é vista a partir da citação 4,7: “Toda bela és, ó minha amada, e em ti defeito não há!”. A assunção de Maria é entrevista na pergunta de 8,5: “Quem é essa que sobe do deserto, encostada ao seu amado?” ou no apelo do esposo em 2,10.13: “Levanta-te! Vem, ó minha amada!”. E por ai vai para entendermos como muitos textos foram aplicados ao mistério da Virgem.
“De entre todos os símbolos do Cântico, a devoção mariana privilegiou o símbolo do ‘jardim fechado’, descrito, como se disse, com imagens exóticas e ‘paradisíacas’ no capítulo 4 do Cântico. O arquétipo que o poeta tem em mente é o procriativo e o materno, valorizado pela presença das águas fecundantes (‘a fonte selada’). A ideia é, pois, a de um espaço vivo e fértil, mas sobretudo sagrado, como o manifesta a insistência sobre a alusão ao fechado e ao selado. Fecundidade e inviolabilidade, maternidade e virgindade, vida e sacralidade fundem-se conjuntamente e facilitam a aplicação a Maria Virgem e Mãe. Mas no dizer original do Cântico aquele jardim ‘fechado’ encarna sobretudo a ideia de mistério intransponível, encerrado no corpo de mulher, mistério que só pode ser revelado por amor e dádiva, e não por conquista forçada”  (Gianfranco Ravasi – Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus).

Para nós que temos a Virgem de Aparecida como padroeira, na celebração dos 300 anos de encontro da imagem, poderia se aplicar a apresentação que a mulher do Cântico faz de si mesma em 1,5: “Sou de pele negra, mas formosa”. Só na Europa há pelo menos uns 275 exemplares de representações marianas ditas “Senhora negra”. 


E TE CHAMAVAM MARIA... – Texto 9

   Os que participam da missa do ano novo, dedicada à Mãe de Deus, já ouviram no cântico de abertura a referência a um texto do livro de Judite aplicado à Virgem Maria: ‘Tu és a glória de Jerusalém, Ave Maria! És a alegria do povo de Deus. Ave, Maria!’ E assim segue o canto, inspirado em Jt 15,9-10, uma benção que o sumo-sacerdote Joaquim e o conselho dos anciãos dos israelitas dirigiram a Judite, depois da sua vitória triunfal sobre Holofernes, o inimigo hebraico. Este livro não faz parte da Bíblia hebraica nem protestante por que o original que nos chegou estava escrito em grego. O texto não é considerado histórico, mas uma composição que serviu para animar a resistência de Israel ante as culturas estrangeiras, particularmente o helenismo. O autor compõe uma narrativa exemplar com força de persuasão. Seria indispensável uma leitura do texto na íntegra para entender sua aplicação.
   Por trás dessa narrativa está um tema que já conhecemos, o da escolha do último e do fraco, defendido por Deus, e da inversão das sortes e dos destinos (Jt 9,11). A confiança em Deus, a observância da Lei e a fidelidade à aliança são o escudo de Israel. A imagem de Judite influenciou a arte cristã, representando quer a Igreja quer Maria, na vitória sobre o mal. É claro que isso requer de nossa parte um certo limite na aplicação da imagem à Virgem ou mesmo à Igreja. “Se é verdade que estas reelaborações revelam a fecundidade criativa do texto bíblico, capaz de suscitar ideias, emoções, apelos, símbolos sempre novos, por outro, também é verdade que elas perdem de vista a sua raiz profunda que é requintadamente teológica. É, por isso, mais coerente, não obstante a sua liberdade, a aplicação mariana porque reencontra as grandes matrizes bíblicas que impregnam outras passagens ‘femininas’ do Antigo Testamento: a fraqueza do pobre, da vítima, do perseguido atrai a atenção do Criador do céu e da terra que se põe do seu lado; a arrogância do prepotente é humilhada precisamente pela sua vítima; a glória do homem nasce da salvação divina; a confiança e a esperança são as virtudes mais preciosas que geram fortaleza; a história não é um enredo cego e escandalosamente intricado de acontecimentos porque nela se estende também a salvação divina. Todos esses temas envolvem e iluminam a figura de Maria, cantada pela Igreja como nova Judite que aniquila a força do mal em nome do seu Senhor” (Giafranco Ravasi – Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus).  
   Uma outra figura feminina do Antigo Testamento que serve de representação à Virgem é a judia Ester. Explicitamente para nós na Festa de Nossa Senhora Aparecida (Est 5,1b-2; 7,2b-3) sua ação intercessora aparece aplicada à Virgem. É também uma ficção construída sob um fundo falso que seria a perseguição antissemita dos persas. O estilo e o objetivo são os mesmos do livro de Judite. A palavra de esperança que Deus dirige a seu povo brota através de uma mulher frágil, órfã de pai e mãe, adotada por um primo, Mardoqueu. Pela sua beleza, Ester é escolhida para o harém real e de entre as muitas aspirantes como rainha. Nessa luta entre o bem e o mal que se revela nitidamente no texto, Ester será a esperança de salvação para o povo hebreu. Confiando em Deus, ela se apresenta diante do rei para pedir pela salvação do seu povo. Ao êxito de Ester segue-se uma narrativa bastante pesada com alusões às grandes libertações do passado e um final feliz. Conferir o texto.
   “Tal como Judite, e como a antiga Débora, Ester reafirma, quase às portas do cristianismo, ainda que em forma tradicional judaica, a misteriosa força escondida na fraqueza daquele que se entrega a Deus. A alegria ressurge no rosto de Israel não através da força e da habilidade estratégica, mas através da palavra e da pessoa de uma mulher, a realidade mais desconsiderada no mundo oriental. É ela o sinal vivo da esperança, é ela que reintroduz a vontade de viver no coração de um povo devastado e extenuado, é ela que sabe intuir na provação o significado da ação de Deus, revelando-se assim ‘profetisa’ em sentido genuíno. [...] É exatamente sobre o tema da intercessão de Ester que se estabelece uma ponte entre a bela judia e Maria. Assim como a primeira aplaca o soberano persa, assim também Maria se dirige ao Rei de todas as coisas para aplacar no dia do Juízo, fazendo com que o seu amor prevaleça mais uma vez sobrea justiça. Já no século II Irineu utiliza para Maria o título de ‘advogada’. É a primeira vez que Maria aparece nestas vestes. Uma função que será exaltada pela primeira oração mariana por nós conhecida, o célebre Sub tuum praesidium, composto no Egito no século III e chegado até nós na versão grega. [...] A antífona teve uma difusão enorme ao longo dos séculos, entrando em muitas liturgias do Oriente e do Ocidente e contribuiu para incrementar a confiança na intercessão de Maria, aquela que nos pode libertar do perigo do juízo divino” (Giafranco Ravasi – Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus).  Segue a oração traduzida para o português na versão da Liturgia das Horas:

À vossa proteção recorremos, santa Mãe de Deus;
Não desprezeis as nossas súplicas em nossas necessidades,
Mas livrai-nos sempre de todos os perigos,
Ó Virgem gloriosa e bendita.


E TE CHAMAVAM MARIA... – Texto 8


            Ainda estamos longe de esgotar as imagens do Antigo Testamento que nos falam dessa relação entre Deus e o seu povo que podem ser aplicadas à Virgem. Por várias ocasiões, o povo eleito aparece personificado simbolicamente em uma mulher: esposa, mãe, viúva, estéril, filha. Uma dessas imagens é a “Filha de Sião”, uma referência a Jerusalém (cujo significado seria ‘O Senhor está lá), a cidade santa, em seu contínuo chamado à santidade. Ao mesmo tempo é a ela (povo) que se dirige a alegre promessa de libertação definitiva (cf. Sf 3,14-17; Mq 4,9s; Jl 2,21-23). Ela será desposada pelo próprio Deus, revelando-lhe um amor exclusivo (Is 62,5). É a mãe na dor e na tribulação (Mq 4,10; Jr 4,31; 6,2).
Assim lê a LG 55 esses textos, como uma síntese do que já apresentamos e do que virá: “Os livros do Antigo e Novo Testamento, e a tradição veneranda mostram, de modo que se vai tornando cada vez mais claro, a função da Mãe do Salvador na economia da salvação, e colocam-na, por assim dizer, diante dos nossos olhos. Os livros do Antigo Testamento descrevem a história da salvação, que vai preparando, a passos lentos, a vinda de Cristo ao mundo. Estes primeiros documentos, tais como são lidos na Igreja e entendidos à luz da ulterior e plena revelação, iluminam pouco a pouco, sempre com mais clareza, a figura da mulher, a da Mãe do Redentor. Ela aprece, a esta luz, profeticamente esboçada na promessa da vitória sobre a serpente, feita aos nosso primeiros pais já caídos no pecado (cf. Gn 3,15). Do mesmo modo, ela é a Virgem que há de conceber e dar à luz um Filho, cujo nome será Emanuel (cf. Is 7,14; Mq 5,2-3; Mt 1,22-23). Ela sobressai entre os humildes e os pobres do Senhor, que confiadamente dele esperam e recebem a salvação. Enfim, com ela, filha excelsa de Sião, após a longa espera da promessa, cumprem-se os tempos e instaura-se a natureza humana, para mediante os mistérios da sua carne, libertar o homem do pecado”. E assim conclui Angel L. Strada: “É Maria que recebe o anúncio jubiloso de nossa libertação definitiva, é a mulher habitada por Deus e desposada para sempre no amor exclusivo, é a Mãe que nos gera na dor para transformar-nos no povo de Deus. Ela é a Filha de Sião” (Maria: Um Exemplo de Mulher – Ave Maria).
Sião é o monte elevado sobre o qual se apresenta a cidade de Jerusalém com o seu Templo santo, a mais elevada sede da presença divina. A mariologia clássica já celebrava Maria como sede da mais elevada presença de Deus no Filho Jesus e ao mesmo tempo o modelo criatural para os demais seres. Ela é não apenas a esposa de José, mas também de Deus e do Espírito Santo, conforme a tradição cristã. “Como esposa e mãe, Maria torna-se sinal da Igreja que na eucaristia e na Palavra gera Cristo e no batismo gera novos filhos de Deus. Como Sião estéril, cujos filhos por isso não são fruto de geração carnal, mas da graça, assim também Maria é mãe ‘virgem’, que gera ‘não pelo sangue ou pela vontade da carne’. Sião, foi dito, é também mãe viúva e sofredora, e todavia permanece fecunda. Também Maria aos pés da cruz chega ao despojamento total, ao sofrimento extremo e à ‘viuvez’ perdendo o Filho. Mas precisamente naquele instante recebe como filhos os irmãos de Cristo, os filhos adotivos de Deus, personificados no discípulo que Jesus amava, continuando assim nos séculos a sua missão materna. Enfim, Maria é por excelência ‘a filha de Sião’ em cujo ventre (be-quereb) Deus está presente de modo supremo. Em Maria a Palavra divina fez-se carne, humanidade e história de modo pleno e perfeito: ‘O Espírito Santo descerá sobre ti... Aquele que vai nascer será santo e se chamar-se-á Filho de Deus’ (Lc 1,35). O nascimento é sinal de um início, é indício de um limite de tempo, de humanidade; a ‘santidade’ e a filiação divina reportam-nos ao infinito e a Deus. Maria, portanto, a Sião ideal”. (Gianfranco Ravasi – Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus).

Nosso texto de hoje é uma tessitura de vários autores que em suas palavras sintetizam essa imagem de Maria como Sião. Para concluir, um trecho do comentário de Gregório Magno, onde o monte do Templo de Jerusalém se torna símbolo de Maria: “Tal como o monte significa altura, assim o templo significa habitação. Por isso, é dita monte e templo Aquela que, iluminada por méritos incomparáveis, preparou ao Unigênito de Deus um regaço santo no qual apoiar-se. Por outro lado, Maria não se teria tornado um monte elevado, acima dos cimos dos montes, se a fecundidade divina não a tivesse elevado acima dos anjos. Além disso, não se tornado templo do Senhor, se a divindade do Verbo não tivesse descido ao seu seio para assumir a natureza humana. Maria é justamente chamada monte rico de frutos, porque dela nasceu um excelente fruto, isto é, um homem novo” (In I Regum 1,5).

E TE CHAMAVAM MARIA... – Texto 7


   Na genealogia que abre o evangelho de Mateus (1,1-6) aparece o nome de Rute, antepassada de Davi, que a tradição cristã reconheceu como um sinal mariano. A nossa liturgia traz na 20ª Semana comum dois textos desse livro cuja protagonista de nome Rute, tem um significado sugestivo, “amiga”, “companheira”, certamente por se tornar a companhia de Noemi, sua sogra. Vale a pena ler este pequeno livro que se desenrola no quadro simples e pitoresco do campo e das aldeias.
   Vou transcrever aqui o texto de Gianfranco Ravasi na explicação que nos dá dessa simbologia de Rute relacionada a Maria: “A ligação mariana é facilmente descortinada. Enquanto Mateus atribui a José a descendência davídica – e a genealogia acima citada é disso testemunho evidente porque desemboca em ‘José, o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus chamado Cristo’ (1,16) – Lucas, embora reconhecendo o mesmo José como ‘um home da casa de Davi’ (1,27), insere idealmente também Maria na simbologia davídica, como veremos ao analisar o seu evangelho da infância de Jesus. A tradição cristã tornará, depois, explícita esta ligação simbólica, recorrendo também à figura de Rute, vista como imagem de Maria. Mas as aplicações alegóricas orientar-se-ão noutras direções, precisamente no rasto da presença de Rute. Ela, como as outras mulheres citadas na genealogia de Mateus (Tamar, Raab e Betsabeia), tem uma qualidade que a torna ‘diferente’, é uma estrangeira, um dado bastante escandaloso numa civilização tão sensível à pureza racial como é a hebraica. Lutero não tinha dúvidas: isto aconteceu porque Cristo tinha de ser o salvador também dos estrangeiros, isto é, dos pagãos. Os exegetas modernos inclinam-se para uma outra explicação. Rute torna-se instrumento do Espírito na história da salvação, tal como outras mulheres, apesar da sua fraqueza, do seu estatuto de mulheres nem sempre totalmente aceitável, de esposas em condições um tanto excepcionais. Volta, portanto, aquela lei divina que em Maria celebra o seu triunfo e que somos obrigados a reafirmar quase em cada etapa do nosso itinerário mariano. É a lei do ‘menos’ que Deus transforma num ‘mais’. Nós usamos a cruz, como sinal do ‘mais’; na realidade, como sugere Paulo aos Filipenses (2,6-11), ela é sinal do ‘menos’, do pequeno, do último, do desprezado. O vazio é mais próximo de Deus do que o pleno, o pequeno mais que o grande, o pobre mais que o rico, a mulher mais que o homem, a estrangeira mais que a familiar e dotada de direitos congênitos. E é com estes que Deus realiza coisas grandiosas: é de Rute que nasce Davi, o sinal da esperança messiânica. Em certo sentido, a modesta mulher estrangeira recebe uma reverberação real, tal como a modesta virgem da aldeia de Nazaré receberá na história o título de rainha. [...] No ícone mariano de Rute agrada-nos imaginá-la real (de realeza). O Senhor que ‘derruba os poderosos dos seus tronos’, está pronto a colocar neles os humildes e esta lição será repetida também quanto à figura que daqui a pouco vamos analisar, a Ana, mãe de Samuel” (Os rostos de Maria na Bíblia – Paulus).
   A Ana citada por nosso autor é a figura que emerge do Primeiro Livro de Samuel, seu simbolismo mariano está ligado primeiramente ao seu cântico que oferece elementos espirituais e poéticos que Lucas insere no “Magnificat”. Também seu canto é considerado uma inserção posterior profundamente marcado por expressões sálmicas. Seu cântico é fruto de agradecimento a Deus pelo fato de ter eliminado sua esterilidade dando-lhe Samuel (porque a mãe é estéril, o filho que nascerá dela será totalmente graça divina, sinal vivo da vontade e do amor de Deus), sua história pode ser lida em 1Sm 1—2. Observemos na narrativa que Ana, por três vezes, na sua aflição apresentada ao Senhor, se declara “escrava do Senhor”, como a Virgem. Ela consagrará seu filho ao Senhor. Mantida as devidas proporções, o menino de Ana e de Maria são dons divino e não fruto da semente humana. 

   Ainda no livro de Samuel, o segundo, recolheremos a expressão de Davi que Lucas coloca nos lábios de Isabel, ao comparar a Virgem Maria com a arca da Aliança que visita o citado rei: “Como entrará a Arca de Deus em minha casa?” (2Sm 6,9). É talvez este o centro da comparação entre a arca da Aliança, sede da presença de Deus e Maria, sede em Cristo da perfeita presença divina no meio dos homens. Observemos que tanto a arca, como Maria, permanecem três meses nas casas que visitam. Maria é invocada em nossa ladainha como Arca da Aliança. A Arca da Aliança era de madeira, mas revestida de ouro em seu interior e exterior (Ex 25,10-16). Entre o povo de Israel a madeira e o ouro simbolizavam a união da divindade com a humanidade, dizia um monge da igreja siro-oriental, para dizer que em Maria, o ouro por fora era sua distância de qualquer pecado ou impureza, por dentro era o Espírito Santo, que habitava todo o seu íntimo.   

E TE CHAMAVAM MARIA... – Texto 6


    Nesse caminho que fazemos chegamos ao livro dos Juízes onde uma mulher chamada Débora exerce o papel de ‘juíza’ e ‘profetisa’ (Jz 4,4—5,31) por volta do século XII a.C. Esta escolha de Deus vai na contramão da tradição de Israel, uma vez que a mulher era juridicamente desprezada. Ela se torna imagem da proximidade de Deus, que ao lado de um outro personagem feminino, Jael, dará a Israel a vitória sobre o inimigo. Chama a nossa atenção o cântico de Débora no capítulo 5, que exige uma leitura atenta de sua narrativa rica e ao mesmo tempo surpreendente pela violência descrita. A ligação com a Virgem Maria tem a ver com esse modo de Deus conceder vitórias através daqueles ou daquelas que são considerados fracos. Algo relacionado ao canto do Magnificat que canta a certeza de que Deus “derruba os poderosos dos seus tronos e eleva os humildes” (Lc 1,52).
    Esse modo surpreendente de Deus agir na história salvífica se repetirá em outros personagens do Antigo Testamento (Rute, Ana, Ester, Judite) não somente femininos. O próprio Moisés, perseguido e hesitante resistiu ao chamado divino. Davi, o último dos irmãos, era a pessoa menos provável para a missão que Deus iria confiar. Na luta contra o gigante Filisteu vemos claro quem verdadeiramente luta por Israel. Um retrato do limite da criatura unido à ação divina.
   “A consciência da sua pobreza, humildade, simplicidade, também brilha em Maria e, todavia, como veremos, isso não significa fatalismo, inércia, quietismo. Tal como Débora, que sabe ter uma missão de alcance histórico a cumprir, assim também Maria está consciente de que Deus a está a introduzir num caminho único e surpreendente. Não se trata, portanto, de uma humildade que se fecha sobre si mesma, abandonando-se a melancolia, nostalgia ou frustrações. O teólogo Jean-Marie Aubert, na sua obra La donna. Antifemminismo e Critianesimo (Cittadella, Assis 1976), observou justamente: ‘Nos desvios sofridos pelo culto mariano, encontramos a redução do modelo de Maria à feminilidade ideal no sentido de uma exaltação de virtudes que deveriam ser próprias da mulher: a modéstia, a abnegação, a aceitação resignada da vontade de Deus (o fiat de Maria), tudo coisas vantajosas aos homens. Reduzir desse modo Maria a ser um tal modelo simplesmente feminino é o meio mais seguro para desvalorizar o seu culto ou desviar dele as mulheres modernas’. Como veremos, ser ‘serva do Senhor’ é, sim, a consciência do próprio limite de criatura mas unido à ação divina e à vocação extraordinária a que se é chamado” (Gianfranco Ravasi - “Os rostos de Maria na Bíblia” - Paulus).
    Débora une em si essa dupla dimensão de fraqueza e grandeza. A alegria de Débora é a alegria de Maria nessa vitória de Deus sobre o mal, atuando por mãos tão frágeis. Ainda dentro do livro dos Juízes encontramos a figura de Gedeão (Jz 6—8), uma contra figura masculina de Débora, por ser um membro da família mais pobre de Manassés é o mais pequeno de sua casa (cf. Jz 6,15), mesmo assim será o libertador de Israel, que enfrentará o inimigo com um pequeno exército para salientar que a vitória será de Deus. Mas o que liga a sua figura a Maria é a chamada prova do ‘velo’. Gedeão, inseguro e hesitante tal como Moisés e Jeremias, procura uma prova que valide a sua missão. Um velo de ovelha é deixado ao relento. No amanhecer o velo estava impregnado de orvalho, mas ao seu redor tudo estava seco. Gedeão quis também a contra prova: tudo ao redor orvalhado e o velo seco (Jz 6,39). Na simbologia mariana ele torna-se imagem do seio de Maria. Se no seio de cada mãe se realiza um prodígio, quanto maior não é o mistério que se realiza no seio de Maria! O orvalho é símbolo da bênção de Deus. Como outros símbolos do Antigo Testamento, este também aparece no nosso Ofício da Imaculada: “Deus vos salve trono/ do grão Salomão./ Arca do Concerto,/ velo de Gedeão”.[i]
    Ficamos por aqui. No nosso próximo artigo veremos outras figuras femininas do Antigo testamento. Salve Maria!


[i] Reproduzo o que foi afirmado em nosso estudo: - Velo de Gedeão: O livro dos Juízes conta que Deus escolheu Gedeão para salvar Israel da perseguição de seus vizinhos (Jz 6,36). Gedeão ficou surpreso e se considerando incompetente pediu um sinal (milagre) de Deus. Deixou um velo ao relento, uma noite caiu orvalho no velo e não na terra em volta, na outra noite ocorreu o contrário. Foi uma coisa notável e o poeta compara tudo de grande com Maria que sendo Virgem e Mãe foi sinal da vinda do Messias libertador. Na liturgia do advento canta-se: ‘Nuvens chovam o Salvador, céus mandai o orvalho’ aplicando-se ao nascimento de Jesus as palavras do profeta Is 45,8.

E TE CHAMAVAM MARIA... – Texto 5


    O livro do Êxodo traz consigo o marco simbólico da formação do povo de Deus em sua aventura do Egito até a terra da libertação. É muito mais que uma história sobre Israel. Nosso primeiro olhar nesse livro se dirige ao episódio da sarça ardente (Ex 3,2-4) que é considerado uma teofania, uma manifestação da transcendência divina através do fogo[i]. Ele é também símbolo do Espírito Santo: “A chama, de fato, está fora de nós e, tal como a luz, não pode ser agarrada ou detida e, portanto, transcende-nos; e todavia atravessa-nos com seu calor e com o seu esplendor, faz-nos ver quem somos, envolve-nos e invade-nos. O seu caráter ‘inextinguível’ parece evocar a eternidade perfeita e a imutabilidade suprema de Deus” (Gianfranco Ravasi - “Os rostos de Maria na Bíblia” - Paulus).
   Esse simbolismo da sarça ardente foi assumido por diversos Padres da Igreja[ii] numa associação alegórica, metafórica, livre e criativa que reconhecia nesta sarça que queima sem se consumir, a virgindade perpétua de Maria[iii]: “Aquilo que era prefigurado na chama e na sarça foi abertamente manifestado no mistério da Virgem. Tal como no monte a sarça ardia e não se consumia, assim a Virgem deu à luz, mas não se corrompeu. Não te pareça inconveniente a similitude da sarça, que prefigura o corpo da virgem, a qual deu à luz Deus” (Gregório de Nissa, sec. IV, numa homilia do Natal).
   Uma outra dimensão simbólica explorada pelos Padres da Igreja diz que assim como Deus se revelou a Moisés através da sarça, em Maria, Deus se revela plenamente. Assim nos aproximamos desse mistério da Virgem com toda reverência que nos é possível, com os ‘pés descalços’ nesse solo santo[iv].
   Uma outra evocação mariana no livro do Êxodo se aplica a irmã de Moisés e Aarão que se chamava Maria. Sua presença ganha destaque no momento da conclusão da travessia do mar, onde entoa um hino exaltando os feitos do Senhor. É apenas um destaque modesto que quer sublinhar a presença desse nome que será dado a milhões de mulheres ao longo dos séculos e quase sempre em honra da mãe de Jesus. O próprio Novo Testamento (NT) está repleto de Marias. “’Maria’ significaria, por isso, ‘excelsa, elevada, augusta’, um título à primeira vista mais pertinente com a sua glória do que com a sua existência simples e quotidiana. Ser Mãe de Deus é, de fato, o sinal da sua grandeza: mas como canta no Magnificat, ela sabe que é precisamente no terreno de sua pobreza que Deus fez brotar a sua glória; é na sua humildade e entrega total a Deus que se realiza o acontecimento excelso da encarnação que torna  ‘a virgem de nome Maria’ (Lc 1,27) verdadeiramente ‘excelsa, elevada, augusta’. Entre parêntesis recordamos que, num jogo de palavras possível em hebraico, São Jerônimo forjará a definição do nome ‘Maria’ como ‘stilla maris’, isto é, ‘gota daquele mar’ infinito que é Deus, definição que por um erro copista se tornará a célebre stella maris, ‘estrela do mar’, entrada no magnífico hino mariano ‘Ave, estrela do mar’” (Gianfranco Ravasi - “Os rostos de Maria na Bíblia” - Paulus).
   Concluamos essa página com um dos versos do hino mariano da Igreja etíope (“Louvor de Maria”), do século VII: “Tu és o arbusto visto por Moisés no meio das chamas e que não se consumia, o qual é o Filho. Ele veio e habitou no teu seio e o fogo da sua divindade não consumia a tua carne. Orai por nós, Senhora!”.  


[i] Na animação da DreamWork “O Príncipe do Egito” essa teofania é mostrada com uma sutileza de indefinição onda voz masculina e feminina se misturam para comunicar o mistério divino.
[ii] Os chamados ‘Padres da Igreja’ (Patrística) são os teólogos dos séculos I até o IV, mas há quem estenda até o século VII da história da nossa Igreja. Eles foram os originadores de toda uma reflexão que nos ajuda a compreender os artigos de nosso credo, entre outras coisas...
[iii] Sem esquecermos a menção que se faz na terceira hora do Ofício da Imaculada, conforme estudamos num de nossos encontros do sábado, que aqui transcrevo: “Sarça da visão: a história de Moisés como libertador do povo de Israel que estava escravizado no Egito começa verdadeiramente com este fato: ao pastorear o seu rebanho viu uma sarça que não se consumia. Era um sinal de Deus que o chamava por meio desta visão e o constituía na grande missão de libertar o seu povo. Maria experimenta o maravilhoso em sua vida e foi convidada para uma grande missão”.
[iv] Também a arte herdou essa simbologia, Nicolas Froment (1475), compôs um quadro onde a figura de Maria com o Menino aparece nas pontas do arbusto envolto em chamas. 

E TE CHAMAVAM MARIA... – Texto 4


Em nossa caminhada de reflexão sobre Maria, nos propomos a examinar a Sagrada Escritura para contemplarmos as imagens que deste mundo brotam e refletem os traços marianos, como sementes plantadas desde a primeira aliança (Antigo Testamento: AT). O que faremos é um decalque de traços que nos séculos passados outros traçaram contemplando essas páginas sagradas e inspiradas. Gianfranco Ravasi, no seu livro “Os rostos de Maria na Bíblia” (Paulus), nos oferece trinta e uma imagens bíblicas, tanto quanto são os dias do mês de maio. Recolheremos desse autor algumas indicações.
Nossa viagem ao Mundo Bíblico em busca das referências à Virgem Maria tem seu início com o livro do Gênesis. Lá, nos primeiros capítulos, domina a imagem de uma mulher chamada Eva. Sua atitude de desobediência é completamente contrária à de Maria. No entanto, do seu ato nasce a mais significativa promessa de todo o Antigo Testamento: a vitória de Deus sobre o pecado. Da descendência de Adão e Eva virá um filho da mulher que derrotará o antigo inimigo. A tradição encontrou nestas páginas a presença mariana escondida. Também são chamadas de "Proto evangelho", ou seja, um primeiro anúncio da Boa Nova. Esse primeiro casal serve de referência a Cristo e Maria. Ambos, por um caminho de obediência plena dão início à nova humanidade. “Tal como Eva foi a mãe dos viventes pecadores, assim Maria é a mãe dos viventes fiéis a Deus. O apelativo ‘mulher’ dirigido por Jesus à sua mãe em Caná (“Mulher, que tem isso a ver conosco?”, Jo 2,4) e no Calvário (“Mulher, eis aí o teu filho”, Jo 19,26) é visto como uma alusão à nova ‘mulher’ que em Maria está a manifestar. Irineu usa ainda uma curiosa imagem, a imagem dos nós: Maria desata os nós do pecado, nós iniciados por Eva e Adão, nós que ao longo dos séculos se apertam e tornam o homem prisioneiro” (Gianfranco Ravasi - “Os rostos de Maria na Bíblia” - Paulus).
Antes da realização dessa promessa temos um longo caminho a percorrer. A luta iniciada no paraíso atravessa toda a história da humanidade, assim quem observa de maneira sincera a si mesmo e ao outro comprova essa dramática luta entre o bem e o mal. Nessa luta Maria será sinal de vitória. É dela que nascerá o Redentor. Eles são, assim, fundamento para a esperança da humanidade.
A promessa do Redentor, do Emanuel, do Messias esperado vai se construindo ao longo da história de Israel, particularmente na desesperança provocada pelos pastores de Israel. Dois textos apontam mais diretamente para a promessa do Redentor onde a figura da mãe ganha seu relevo. Na profecia de Isaias (7,10-14) feita a Acaz no ano 736, se revela, para além do dado histórico, uma particular menção Àquele que há de vir: um menino, que será Deus-conosco (Emanuel: o recém nascido encarnará uma mensagem divina de esperança porque recordará com as suas ações que Deus continua a acompanhar o seu povo, a apoiá-lo e a salvá-lo) e que nascerá de uma jovem virgem. Mateus faz uma clara menção dessa profecia no seu anuncio do nascimento de Jesus (Mt 1,22-23). A aplicação desse oráculo a Cristo arrasta consigo também a aplicação mariana. “A ‘jovem mulher’ não é estéril, como acontecia noutras narrações de nascimento célebres (Isaac, Sansão, Samuel), mas ‘virgem’, porque o filho que dela vai nascer não provém ‘nem da carne nem da vontade do homem, mas de Deus’” (Gianfranco Ravasi - “Os rostos de Maria na Bíblia” - Paulus). Essa mesma promessa de Isaias será retomada livremente por Miqueias, chegando a detalhar alguns pormenores (Mq 5,1-3). Esses dois textos são os mais claros e diretos em seu conteúdo e se refletem sobre os evangelhos do nascimento de Jesus.

Ó Virgem Imaculada, mãe de Deus e cheia de graça,
Aquele que tu trouxeste é o Emanuel, o fruto do teu ventre.
Tu, ó Maria, excedes todo louvor!
Eu te saúdo, Maria, Mãe de Deus e glória dos anjos,
Porque tu superas em plenitude de graça todos os anúncios dos profetas!
O Senhor está contigo: tu dás à luz o Salvador do mundo.
(invocação mariana encontrada num fragmento de terracota egípcio do sec. III).  

Seguiremos o nosso caminho pelas páginas do AT contemplando ainda algumas imagens de textos cujos personagens, fatos, elementos, foram vistos como prenúncio de Maria na história salvífica, de suas virtudes e de releituras teológicas, místicas, poéticas aplicadas à Virgem. Até a próxima. 


E TE CHAMAVAM MARIA... – Texto 3


            A compreensão da presença de Maria no cenário da fé cristã se coloca no plano mais amplo da salvação quando Deus estabelece uma Aliança com o ser humano. Tal Aliança é muito mais que o mero estabelecimento de relações amistosas entre Deus e o ser humano, ou simples promessa divina de proteção e auxílio enquanto o ser humano lhe deve gratidão, respeito, súplica. Essa é uma concepção pagã. A Aliança bíblica convoca o ser humano para associar-se a Ele, comprometendo sua liberdade no seguimento dos seus planos. A partir dessa concepção podemos entender os grandes personagens bíblicos e sua caminhada de fé desde Abraão.
            Ao Deus que se revela e manifesta o seu amor convidando-nos a caminhar com Ele a resposta da obediência tem que ser por amor. Daí podemos entender tantas imagens do amor humano utilizadas pelos autores sagrados para traduzir o amor de Deus por nós e a relação que deseja estabelecer: pode ser a de um homem apaixonado, possesivo e ciumento, de um pai que educa ou simplesmente o amor terno e fiel de uma mãe. Dentro desse quadro de demonstrações amorosas, em uma linguagem que compreendemos, Deus espera que assumamos um compromisso com Ele.
            Jesus virá a ser o grande sinal da Aliança, a maior demonstração visível do amor divino. Por Ele o amor de Deus chega a nós e através dele voltamos para o Pai. Quando Ele nos afirma ser “Caminho, verdade e vida”, temos claro que somente pela escuta e obediência a sua palavra e na aceitação de sua pessoa e de sua doutrina temos acesso ao Pai. Jesus está no centro dessa história salvífica, o grande mediador entre nós e o Pai.
            A ação de Jesus é a mesma que o Pai vem estabelecendo desde o início, uma salvação que não prescinde da colaboração humana. Tal chamado respeita e inclui a originalidade e a liberdade de cada um sob a ação da Graça. Na dimensão cristã fica mais clara uma salvação que é vivida na solidariedade para com o outro. Cada um tem uma importância salvífica para o outro. O que já experimentamos no plano natural se aplica também no plano sobrenatural. Nossa fé foi construída pelo testemunho dos que estão a nossa volta e também daqueles que se destacaram em seu papel na missão evangelizadora da Igreja.
            Nessa centralidade de Cristo no mistério salvífico, qualquer outro elemento ou pessoa só tem valor para nós se é derivado d’Ele ou a Ele se refere. A mediação dos santos se mede pela proximidade e conexão com o mistério de Cristo. Assim podemos entender o porquê de Maria nesse quadro da vida cristã. É o papel que ela ocupa na história da salvação que determina a sua conexão com o mistério de Cristo. Deus a escolheu para torna-la um sinal visível de Sua ação, uma manifestação do Seu amor.
Maria entra na esteira dos testemunhos bíblicos. “Na leitura atenta dos dados das Escrituras e no seguimento crente da interpretação que a Igreja oferece aos mesmos, temos os melhores caminhos para definir a posição de Maria na história da salvação, e, por conseguinte, em nossa própria história” (Maria: um exemplo de Mulher – Angel L. Strada – Ave Maria).  Seguiremos a nossa reflexão analisando as imagens bíblicas do Antigo Testamento onde a Igreja busca suas referências ao mistério de Maria que não têm um caráter bibliográfico, apenas nos ajuda a perceber as intuições divinas espalhadas nos textos sagrados que nos permitem vislumbrar a importância de sua pessoa e de sua missão dentro do plano desenvolvido por Deus. 


Oração a Nossa Senhora da Santíssima Trindade

Eu te venero de todo meu coração, Virgem Santíssima, como a filha do Pai eterno e a Ele consagro o meu ser na sua totalidade, acolhendo a filiação divina, na gratuidade.
Eu te venero de todo meu coração, Virgem Santíssima, como Mãe do Filho único e a Ele consagro o meu ser com todos os sentidos a serviço da vida e da comunhão.
Eu te venero de todo meu coração, Virgem Santíssima, como templo querido do Espírito Santo e a Ele consagro o meu coração com todos os seus afetos, pedindo-te obter da Santíssima Trindade a perseverança no seguimento de Jesus e no amor trinitário.


“E TE CHAMAVAM MARIA...” - Texto 02.



     Ao longo dos séculos a discussão em torno do mistério mariano fez com que se projetasse sobre ele luzes de tonalidades diferentes que ora iluminavam sua pessoa, outras obscureciam e empobreciam. O nosso tempo não é diferente. Há uma variedade de sentimentos que se mesclam de luzes e sombras. A CNBB nos propõe para esse ano uma releitura dos documentos oficiais da Igreja no que tange a figura de Maria no mistério salvífico, tanto que há um projeto de republicações para provocar novo interesse na beleza dos diversos posicionamentos eclesial.
     A Lumem Gentium (documento do Vaticano II), no capítulo VIII nos apresenta uma síntese e extensa e ao mesmo tempo completa da doutrina católica sobre Maria, situando-a no lugar mais teológico mais adequado e verdadeiro: o mistério de Cristo e da Igreja. Esse documento é responsável pela renovação da devoção mariana na Igreja. Em sua esteira veio a Marialis Cultus de Paulo VI, para uma reta compreensão “do desenvolvimento do Culto à Santíssima Virgem”. Entre os aspectos bíblicos e teológicos, busca-se reordenar a parte litúrgica das memórias, festas e solenidades marianas.   Nos últimos tempos João Paulo II deu especial incentivo a devoção mariana, particularmente por seu próprio lema pontifício: “Totus tuus” (Todo teu) que nos revela um profundo amor pessoal e um verdadeiro programa pastoral. Recomendo a leitura da “Redempetoris Mater” (A Mãe do Redentor), de João Paulo II sobre ‘a Bem-aventurada Virgem Maria na vida da Igreja que está a caminho’.
    O Vaticano II chamou nossa atenção para o valor da religiosidade popular e também na reordenação dessa para uma centralidade em Cristo.  O nosso continente tem presente de maneira bem acentuada a religiosidade na devoção mariana e reconhece a força de evangelização que essa traz consigo. Os documentos produzidos em nossas conferências trazem esse selo mariano de uma herança e de um instrumento valioso para a evangelização dos nossos povos no encontro com Deus e com o outro, mesmo na consciência de que as manifestações religiosas em torno de Maria ainda careçam de uma purificação e aprofundamento.
    Por parte de muitos cristãos há um certo temor que a devoção mariana nos afaste do essencial: Cristo. Desviando a nossa atenção para coisas secundárias, levando-nos, talvez, a uma vivência devocional intimista que nos tira dos verdadeiros problemas do mundo e da humanidade de hoje. “Diante de enfoques falsos, muitas vezes brotam com razão numerosos preconceitos com relação à figura de Maria. De fato, existem perspectivas que deformam e caricaturam sua imagem, arrancando-a do mundo real para convertê-la numa princesa de um conto de fadas ou num ser inacessível e sobre-humano. Surge, então, a tentação de rejeitar categoricamente tudo que se refere a Maria”  (Angel L. Strada, in Maria: um exemplo de mulher).
    A dificuldade encontrada por muitos da percepção do valor da devoção mariana talvez esteja no exagero com que alguns vivem a sua devoção a Maria. Dando-lhe todo tipo de privilégios e prerrogativas numa ação com poderes próprios da divindade. No meio do imaginário popular sobre a sua vida, há também uma certa predileção por parte de alguns com relação às aparições e mensagens privadas, muitas vezes deixando de lado o que nos diz os evangelhos ou mesmo a Igreja com relação a esses fenômenos extraordinários.  Sem falar de uma devoção que se situa em sentimentos esporádicos vividos em situações de apuro e necessidade. Como podemos ver, há uma gama de desserviços à verdadeira devoção mariana.
    Esse ano pode nos abrir a possibilidade de renovar nosso encontro com Maria por uma atualização e melhor clareza da espiritualidade e da teologia mariana. Para isso nosso olhar deve voltar-se para a Sagrada Escritura, particularmente os evangelhos, e como o interpreta o magistério da Igreja, numa linguagem que nos permita chegar ao homem e a mulher de nosso tempo ajudando-os a transformar em vida o que nos inspira a Virgem Maria, pois ela é parte constitutiva de todo o mistério cristão.  


Texto 01

“E TE CHAMAVAM MARIA...” 

  Quando iniciei o meu trabalho como diretor espiritual do seminário menor nos idos de 1993, ficou também sob a minha incumbência algumas aulas de formação para os futuros candidatos ao ministério sacerdotal. Além da formação litúrgica, passei a apresentar algumas formações sobre a devoção Mariana. Essa sempre esteve presente no modo em que fui introduzido na fé no meio familiar. O tempo do seminário reforçou ainda mais esse meu olhar para Maria e a compreensão do seu ministério no grande mistério salvífico. A devoção diária do terço foi criando um hábito meditativo em meio às distrações da mente que me vinham com bastante frequência. 
  Na época cheguei a elaborar uma apostila que tinha o título que estou dando a esses artigos. É de uma canção do Pe. Zezinho, que sempre reservou em suas composições um especial espaço para Maria, compondo pequenas peças mistas de teologia mariana carregada de profunda e poética espiritualidade. Essas canções também ‘embalaram’ a minha fé. Esse Ano Mariano, que celebra os trezentos anos da aparição da imagem de Aparecida e os cem anos da aparição da virgem de Fátima, merece a retomada e o empenho de voltar a escrever sobre Maria.
  Como muito já se disse ou escreveu, mas “sobre Maria nunca se dirá o bastante” (Sto. Afonso Maria Monfort), me coloco também na esteira daqueles que tentam ajudar outros na compreensão e no valor da devoção mariana. Tenham um pouco de paciência na frequência os textos, pois necessito conferir o que escrevo com outros autores, além do magistério da Igreja, para dar fundamento ao texto. Darei as devidas citações aos seus autores e ao mesmo tempo darei alinhamento aos vários pensamentos aqui partilhados. Pode ser que haja repetição de ideias por distração ou para reforçar algum pensamento.
  O Pe. André Moffatt, ss (Sociedade de são Sulpício) foi meu professor de Mariologia no Seminário Maior Nossa Senhora de Fátima, em Brasília. Dele tomo algumas linhas de reflexão. Meu agradecimento pela clareza e síntese de pensamento.
  Falar de Maria traz consigo certa facilidade, pois ela está presente de um modo particular tanto na Igreja católica quanto Ortodoxa.  Pelo forte apelo popular que a devoção mariana tem alcançado e ‘forçado’ a reflexão da própria Igreja. Mas acima de tudo isso está o seu papel na história da salvação. Ela é mãe de Deus e nossa mãe por consequência de nossa comunhão com o Filho ao nos chamar de irmãos. O sentimento materno-filial ganhou proporções grandiosas, visceral.
  Mas é claro que a maior dificuldade é compor uma reflexão de um modo teológico certo, sem exageros e sentimentalismos, dando-lhe o verdadeiro sentido e colocando-lhe no devido lugar. A maternidade de Maria, ponto primeiro de nossa reflexão e de onde emana toda sua virtuosidade, encontra um obstáculo na sociedade atual que já não valoriza tanto a maternidade (aborto, mães solteiras e desassistidas etc.). Sem falar de que a virgindade, tanto masculina como feminina, não encontra mais valor em nossa sociedade diante do liberalismo sexual. Maria é virgem por uma opção pessoal e Mãe por uma graça de Deus. O contexto ecumênico torna também difícil tratar de Maria dado ao cristocentrismo e a mediação única de Cristo. A tendência é omitir a pessoa de Maria nos diálogos que tentamos travar.
 Gosto muito de trata-la como a Virgem, mesmo compreendendo o valor de sua consagração, o que me leva a dar-lhe esse nome é o seu coração todo voltado para Deus, onde outros elementos não encontram tanta importância.
  Esta aberta a temporada de reflexões marianas. Um leque de possibilidades desponta a nossa frente. Vamos juntos nesse caminho. Ela mesma se faz companheira de caminhada e nos ilumina com a própria luz que ela recebe do Filho. Que essa partilha nos ajude a crer melhor, a rezar e a esperar com a mesma confiança que essa primeira cristã soube viver a sua fé.


                                                                              Pe. João Bosco Vieira Leite