Ao longo dos séculos a discussão em
torno do mistério mariano fez com que se projetasse sobre ele luzes de
tonalidades diferentes que ora iluminavam sua pessoa, outras obscureciam e
empobreciam. O nosso tempo não é diferente. Há uma variedade de sentimentos que
se mesclam de luzes e sombras. A CNBB nos propõe para esse ano uma releitura
dos documentos oficiais da Igreja no que tange a figura de Maria no mistério
salvífico, tanto que há um projeto de republicações para provocar novo
interesse na beleza dos diversos posicionamentos eclesial.
A Lumem Gentium (documento do Vaticano
II), no capítulo VIII nos apresenta uma síntese e extensa e ao mesmo tempo
completa da doutrina católica sobre Maria, situando-a no lugar mais teológico
mais adequado e verdadeiro: o mistério de Cristo e da Igreja. Esse documento é
responsável pela renovação da devoção mariana na Igreja. Em sua esteira veio a Marialis Cultus de Paulo VI, para uma
reta compreensão “do desenvolvimento do Culto à Santíssima Virgem”. Entre os
aspectos bíblicos e teológicos, busca-se reordenar a parte litúrgica das
memórias, festas e solenidades marianas.
Nos últimos tempos João Paulo II
deu especial incentivo a devoção mariana, particularmente por seu próprio lema
pontifício: “Totus tuus” (Todo teu)
que nos revela um profundo amor pessoal e um verdadeiro programa pastoral. Recomendo
a leitura da “Redempetoris Mater” (A
Mãe do Redentor), de João Paulo II sobre ‘a Bem-aventurada Virgem Maria na vida
da Igreja que está a caminho’.
O Vaticano II chamou nossa atenção
para o valor da religiosidade popular e também na reordenação dessa para uma
centralidade em Cristo. O nosso
continente tem presente de maneira bem acentuada a religiosidade na devoção
mariana e reconhece a força de evangelização que essa traz consigo. Os
documentos produzidos em nossas conferências trazem esse selo mariano de uma
herança e de um instrumento valioso para a evangelização dos nossos povos no
encontro com Deus e com o outro, mesmo na consciência de que as manifestações
religiosas em torno de Maria ainda careçam de uma purificação e aprofundamento.
Por parte de muitos cristãos há um
certo temor que a devoção mariana nos afaste do essencial: Cristo. Desviando a
nossa atenção para coisas secundárias, levando-nos, talvez, a uma vivência
devocional intimista que nos tira dos verdadeiros problemas do mundo e da
humanidade de hoje. “Diante de enfoques falsos, muitas vezes brotam com razão
numerosos preconceitos com relação à figura de Maria. De fato, existem
perspectivas que deformam e caricaturam sua imagem, arrancando-a do mundo real
para convertê-la numa princesa de um conto de fadas ou num ser inacessível e
sobre-humano. Surge, então, a tentação de rejeitar categoricamente tudo que se
refere a Maria” (Angel L. Strada, in Maria: um exemplo de mulher).
A dificuldade encontrada por muitos
da percepção do valor da devoção mariana talvez esteja no exagero com que
alguns vivem a sua devoção a Maria. Dando-lhe todo tipo de privilégios e
prerrogativas numa ação com poderes próprios da divindade. No meio do
imaginário popular sobre a sua vida, há também uma certa predileção por parte
de alguns com relação às aparições e mensagens privadas, muitas vezes deixando
de lado o que nos diz os evangelhos ou mesmo a Igreja com relação a esses
fenômenos extraordinários. Sem falar de
uma devoção que se situa em sentimentos esporádicos vividos em situações de
apuro e necessidade. Como podemos ver, há uma gama de desserviços à verdadeira
devoção mariana.
Esse ano pode nos abrir a
possibilidade de renovar nosso encontro com Maria por uma atualização e melhor
clareza da espiritualidade e da teologia mariana. Para isso nosso olhar deve
voltar-se para a Sagrada Escritura, particularmente os evangelhos, e como o
interpreta o magistério da Igreja, numa linguagem que nos permita chegar ao
homem e a mulher de nosso tempo ajudando-os a transformar em vida o que nos
inspira a Virgem Maria, pois ela é parte constitutiva de todo o mistério
cristão.