E TE CHAMAVAM MARIA... – Texto 7


   Na genealogia que abre o evangelho de Mateus (1,1-6) aparece o nome de Rute, antepassada de Davi, que a tradição cristã reconheceu como um sinal mariano. A nossa liturgia traz na 20ª Semana comum dois textos desse livro cuja protagonista de nome Rute, tem um significado sugestivo, “amiga”, “companheira”, certamente por se tornar a companhia de Noemi, sua sogra. Vale a pena ler este pequeno livro que se desenrola no quadro simples e pitoresco do campo e das aldeias.
   Vou transcrever aqui o texto de Gianfranco Ravasi na explicação que nos dá dessa simbologia de Rute relacionada a Maria: “A ligação mariana é facilmente descortinada. Enquanto Mateus atribui a José a descendência davídica – e a genealogia acima citada é disso testemunho evidente porque desemboca em ‘José, o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus chamado Cristo’ (1,16) – Lucas, embora reconhecendo o mesmo José como ‘um home da casa de Davi’ (1,27), insere idealmente também Maria na simbologia davídica, como veremos ao analisar o seu evangelho da infância de Jesus. A tradição cristã tornará, depois, explícita esta ligação simbólica, recorrendo também à figura de Rute, vista como imagem de Maria. Mas as aplicações alegóricas orientar-se-ão noutras direções, precisamente no rasto da presença de Rute. Ela, como as outras mulheres citadas na genealogia de Mateus (Tamar, Raab e Betsabeia), tem uma qualidade que a torna ‘diferente’, é uma estrangeira, um dado bastante escandaloso numa civilização tão sensível à pureza racial como é a hebraica. Lutero não tinha dúvidas: isto aconteceu porque Cristo tinha de ser o salvador também dos estrangeiros, isto é, dos pagãos. Os exegetas modernos inclinam-se para uma outra explicação. Rute torna-se instrumento do Espírito na história da salvação, tal como outras mulheres, apesar da sua fraqueza, do seu estatuto de mulheres nem sempre totalmente aceitável, de esposas em condições um tanto excepcionais. Volta, portanto, aquela lei divina que em Maria celebra o seu triunfo e que somos obrigados a reafirmar quase em cada etapa do nosso itinerário mariano. É a lei do ‘menos’ que Deus transforma num ‘mais’. Nós usamos a cruz, como sinal do ‘mais’; na realidade, como sugere Paulo aos Filipenses (2,6-11), ela é sinal do ‘menos’, do pequeno, do último, do desprezado. O vazio é mais próximo de Deus do que o pleno, o pequeno mais que o grande, o pobre mais que o rico, a mulher mais que o homem, a estrangeira mais que a familiar e dotada de direitos congênitos. E é com estes que Deus realiza coisas grandiosas: é de Rute que nasce Davi, o sinal da esperança messiânica. Em certo sentido, a modesta mulher estrangeira recebe uma reverberação real, tal como a modesta virgem da aldeia de Nazaré receberá na história o título de rainha. [...] No ícone mariano de Rute agrada-nos imaginá-la real (de realeza). O Senhor que ‘derruba os poderosos dos seus tronos’, está pronto a colocar neles os humildes e esta lição será repetida também quanto à figura que daqui a pouco vamos analisar, a Ana, mãe de Samuel” (Os rostos de Maria na Bíblia – Paulus).
   A Ana citada por nosso autor é a figura que emerge do Primeiro Livro de Samuel, seu simbolismo mariano está ligado primeiramente ao seu cântico que oferece elementos espirituais e poéticos que Lucas insere no “Magnificat”. Também seu canto é considerado uma inserção posterior profundamente marcado por expressões sálmicas. Seu cântico é fruto de agradecimento a Deus pelo fato de ter eliminado sua esterilidade dando-lhe Samuel (porque a mãe é estéril, o filho que nascerá dela será totalmente graça divina, sinal vivo da vontade e do amor de Deus), sua história pode ser lida em 1Sm 1—2. Observemos na narrativa que Ana, por três vezes, na sua aflição apresentada ao Senhor, se declara “escrava do Senhor”, como a Virgem. Ela consagrará seu filho ao Senhor. Mantida as devidas proporções, o menino de Ana e de Maria são dons divino e não fruto da semente humana. 

   Ainda no livro de Samuel, o segundo, recolheremos a expressão de Davi que Lucas coloca nos lábios de Isabel, ao comparar a Virgem Maria com a arca da Aliança que visita o citado rei: “Como entrará a Arca de Deus em minha casa?” (2Sm 6,9). É talvez este o centro da comparação entre a arca da Aliança, sede da presença de Deus e Maria, sede em Cristo da perfeita presença divina no meio dos homens. Observemos que tanto a arca, como Maria, permanecem três meses nas casas que visitam. Maria é invocada em nossa ladainha como Arca da Aliança. A Arca da Aliança era de madeira, mas revestida de ouro em seu interior e exterior (Ex 25,10-16). Entre o povo de Israel a madeira e o ouro simbolizavam a união da divindade com a humanidade, dizia um monge da igreja siro-oriental, para dizer que em Maria, o ouro por fora era sua distância de qualquer pecado ou impureza, por dentro era o Espírito Santo, que habitava todo o seu íntimo.