E TE CHAMAVAM MARIA... – Texto 9

   Os que participam da missa do ano novo, dedicada à Mãe de Deus, já ouviram no cântico de abertura a referência a um texto do livro de Judite aplicado à Virgem Maria: ‘Tu és a glória de Jerusalém, Ave Maria! És a alegria do povo de Deus. Ave, Maria!’ E assim segue o canto, inspirado em Jt 15,9-10, uma benção que o sumo-sacerdote Joaquim e o conselho dos anciãos dos israelitas dirigiram a Judite, depois da sua vitória triunfal sobre Holofernes, o inimigo hebraico. Este livro não faz parte da Bíblia hebraica nem protestante por que o original que nos chegou estava escrito em grego. O texto não é considerado histórico, mas uma composição que serviu para animar a resistência de Israel ante as culturas estrangeiras, particularmente o helenismo. O autor compõe uma narrativa exemplar com força de persuasão. Seria indispensável uma leitura do texto na íntegra para entender sua aplicação.
   Por trás dessa narrativa está um tema que já conhecemos, o da escolha do último e do fraco, defendido por Deus, e da inversão das sortes e dos destinos (Jt 9,11). A confiança em Deus, a observância da Lei e a fidelidade à aliança são o escudo de Israel. A imagem de Judite influenciou a arte cristã, representando quer a Igreja quer Maria, na vitória sobre o mal. É claro que isso requer de nossa parte um certo limite na aplicação da imagem à Virgem ou mesmo à Igreja. “Se é verdade que estas reelaborações revelam a fecundidade criativa do texto bíblico, capaz de suscitar ideias, emoções, apelos, símbolos sempre novos, por outro, também é verdade que elas perdem de vista a sua raiz profunda que é requintadamente teológica. É, por isso, mais coerente, não obstante a sua liberdade, a aplicação mariana porque reencontra as grandes matrizes bíblicas que impregnam outras passagens ‘femininas’ do Antigo Testamento: a fraqueza do pobre, da vítima, do perseguido atrai a atenção do Criador do céu e da terra que se põe do seu lado; a arrogância do prepotente é humilhada precisamente pela sua vítima; a glória do homem nasce da salvação divina; a confiança e a esperança são as virtudes mais preciosas que geram fortaleza; a história não é um enredo cego e escandalosamente intricado de acontecimentos porque nela se estende também a salvação divina. Todos esses temas envolvem e iluminam a figura de Maria, cantada pela Igreja como nova Judite que aniquila a força do mal em nome do seu Senhor” (Giafranco Ravasi – Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus).  
   Uma outra figura feminina do Antigo Testamento que serve de representação à Virgem é a judia Ester. Explicitamente para nós na Festa de Nossa Senhora Aparecida (Est 5,1b-2; 7,2b-3) sua ação intercessora aparece aplicada à Virgem. É também uma ficção construída sob um fundo falso que seria a perseguição antissemita dos persas. O estilo e o objetivo são os mesmos do livro de Judite. A palavra de esperança que Deus dirige a seu povo brota através de uma mulher frágil, órfã de pai e mãe, adotada por um primo, Mardoqueu. Pela sua beleza, Ester é escolhida para o harém real e de entre as muitas aspirantes como rainha. Nessa luta entre o bem e o mal que se revela nitidamente no texto, Ester será a esperança de salvação para o povo hebreu. Confiando em Deus, ela se apresenta diante do rei para pedir pela salvação do seu povo. Ao êxito de Ester segue-se uma narrativa bastante pesada com alusões às grandes libertações do passado e um final feliz. Conferir o texto.
   “Tal como Judite, e como a antiga Débora, Ester reafirma, quase às portas do cristianismo, ainda que em forma tradicional judaica, a misteriosa força escondida na fraqueza daquele que se entrega a Deus. A alegria ressurge no rosto de Israel não através da força e da habilidade estratégica, mas através da palavra e da pessoa de uma mulher, a realidade mais desconsiderada no mundo oriental. É ela o sinal vivo da esperança, é ela que reintroduz a vontade de viver no coração de um povo devastado e extenuado, é ela que sabe intuir na provação o significado da ação de Deus, revelando-se assim ‘profetisa’ em sentido genuíno. [...] É exatamente sobre o tema da intercessão de Ester que se estabelece uma ponte entre a bela judia e Maria. Assim como a primeira aplaca o soberano persa, assim também Maria se dirige ao Rei de todas as coisas para aplacar no dia do Juízo, fazendo com que o seu amor prevaleça mais uma vez sobrea justiça. Já no século II Irineu utiliza para Maria o título de ‘advogada’. É a primeira vez que Maria aparece nestas vestes. Uma função que será exaltada pela primeira oração mariana por nós conhecida, o célebre Sub tuum praesidium, composto no Egito no século III e chegado até nós na versão grega. [...] A antífona teve uma difusão enorme ao longo dos séculos, entrando em muitas liturgias do Oriente e do Ocidente e contribuiu para incrementar a confiança na intercessão de Maria, aquela que nos pode libertar do perigo do juízo divino” (Giafranco Ravasi – Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus).  Segue a oração traduzida para o português na versão da Liturgia das Horas:

À vossa proteção recorremos, santa Mãe de Deus;
Não desprezeis as nossas súplicas em nossas necessidades,
Mas livrai-nos sempre de todos os perigos,
Ó Virgem gloriosa e bendita.