E TE CHAMAVAM MARIA... 23



  Já tratamos da apresentação do Menino, que pela lógica deve ter acontecido antes da fuga para o Egito. Voltando para a Palestina, José e sua família são encaminhados para Nazaré por uma comunicação divina. É de lá que se origina o próximo episódio que envolve a Mãe, segundo a narrativa de uma das recordações colhidas por Lucas (2,41-50). Tendo atingido a idade de 12 anos, ele é levado por seus pais uma segunda vez ao Templo. É aqui que temos as primeiras palavras de Jesus registradas pelos evangelhos. Pela tradição judaica Ele já está apto a acompanhar os pais nesse preceito religioso.
  Tendo os pais cumprido o que estava prescrito, organizaram-se para o retorno à sua cidade, segundo alguns comentaristas, em duas caravanas diferentes. Um julgava que o Menino Jesus estivesse com o outro. Quando estas se encontram num dado momento é que se percebe que o Garoto ficou em Jerusalém. Os pais retornam e o encontram em meio aos doutores da Lei partilhando os seus conhecimentos. Enquanto estes estão admirados com tamanha capacidade, seus pais estão em desespero atrás do Filho. A narrativa não faz e menor menção a como ‘se virou’ Jesus durante esses três dias.
  Maria avança em direção ao Filho para protestar seu ‘desaparecimento’.  Ele responde de forma um tanto seca e na sua resposta deixa entrever claramente a Sua origem e as Suas disposições ao mencionar o seu Pai. “A vocação de Jesus não é estar a serviço de uma mãe extraordinária e de uma santa família de criaturas humanas, mas de estar a disposição do Pai celeste que com Ele tem uma relação única de paternidade. E isto sem faltar aos seus deveres familiares: ‘voltou para Nazaré e era-lhes submisso’ (v. 51). Perante este primeiro corte que Jesus faz dos seus afetos humanos, o desconcerto em Maria e José é evidente: ‘eles ficaram surpreendidos e não compreenderam aquelas palavras’ (vv. 48.50). é a mesma dificuldade que experimentarão os discípulos: ‘Eles não compreenderam nada do que lhes dizia porque era uma linguagem obscura para eles e palavras cujo sentido não compreendiam’ (Lc 18,34). Maria, porém, observa Lucas, ‘conservava todas estas coisas no seu coração’ (v. 51). é através da meditação na fé e do dom da sabedoria revelada que se pode penetrar no mistério de Cristo, mistério que ‘ultrapassa todo conhecimento’, cujo comprimento, largura, altura e profundidade só podem ser revelados por Deus (Ef 3,18-19)”  (Gianfranco Ravasi – Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus).  Na sua meditação, Maria receberá o dom da ‘inteligência’ na fé e da fé, pois guiada pelo Espírito, ela será introduzida no mistério do Filho. Oxalá tenhamos as mesmas disposições meditativas em nossa caminhada.
  Todos os relatos da infância revelam o que está por vir. É o Mestre que aqui se revela, aos pés do qual muitos se sentarão para beber de sua sabedoria e aprender o discipulado (cf. Mt 23,8).  Maria começa a compreender que a sua separação do Filho não é sinal de afastamento, mas de uma nova e diferente proximidade. Deus tem um plano maior para Ele, e por que não dizer também para ela? Jesus poderia se arrogar de Sua própria posição de Filho de Deus, mas se submete numa atitude de obediência aos seus pais, não só colocando-se a serviço da sua família, mas da inteira humanidade, recusando ser servido.
  No retorno a Nazaré, Maria e José podem refletir que se um filho é capaz de acolher com respeito e amor a submissão que lhes é devida, os pais têm que saber que o seu filho tem um destino que eles não podem predeterminar. “Eles podem sonhar à sua imagem, mas, no fim de contas, têm de o acolher como ele é, com os seus dotes específicos e com a sua vocação. Saber aceitar é sinal de amor. Dominar ou considerar o filho (ou a mulher ou o marido) como propriedade privada é sinal, pelo contrário, de egoísmo e de mesquinhez. ‘é preciso que ele cresça e eu diminua’: palavras de João Batista que são também as palavras de Maria e daqueles pais que compreendem a função e os limites da sua missão” (Gianfranco Ravasi – Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus). 
  É esse caminho obscuro de silêncio recolhedor que Maria faz em seu caminhar, descobrindo novas ‘camadas’ daquele Garoto que lhe foi dado para gerar e cuidar. Em sua caminhada de fé não foi poupada das surpresas da vida, como qualquer um de nós. Porque a fé é assim, nunca um caminho pronto, predeterminado, mas sempre por descobrir. Assim caminhou a Virgem, nesse claro/escuro, mas sem deixar de caminhar. Amém.   

E Te chamavam Maria – 22


A visita dos Magos (Mt 2,1-12) trouxe consigo o consequente conhecimento por parte de Herodes do nascimento de Jesus. O rei, em seu temor absurdo, e o medo é um péssimo conselheiro, manda matar os recém-nascidos das redondezas, na esperança de ‘alcançar’ a morte do tal ‘rei-menino’. Avisado em sonho, José se põe em fuga para o Egito com Maria e Menino. Nesse fato, cuja historicidade é questionada ou que talvez não tenha sido tão extenso quanto deixa transparecer a narrativa, encontramos contínua atualidade. “Jesus, Maria e José são simples refugiados, pertencentes à corrente ininterrupta de vítimas do poder que percorrerão terras inóspitas, desertas, cidades estranhas e hostis ao longo de todos os séculos. Sobre a cena cai o sangue dos inocentes e aparece o espectro sanguinário do opressor. Jesus, com sua mãe, é posto, desde sua infância, na fileira dos últimos. É verdade, Mateus cita Oseias 11,1 (‘Do Egito chamei meu filho’), mostrando que Jesus concretiza em plenitude a profecia: não é só filho de Deus em sentido lato como Israel do Êxodo, mas é-o em sentido pleno. E, todavia, é um Deus frágil que monta a sua tenda nos campos dos refugiados, nas ‘favelas’ da miséria. É um Deus que escolhe ser mais pobre do que as suas criaturas porque ‘as aves do céu têm ninhos, as raposas têm suas tocas, mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça’ (Mt 8,20). Aquela advertência dirigida ao chefe de família, José, ‘Levanta-te, toma o Menino e sua Mãe e foge!’, ressoa e ressoou muitas vezes na história para outras famílias e tornou-as mais próximas à de Cristo. Com Ele não estão e não estarão nunca os poderosos, os ricos, os especuladores, os fabricantes de armas, os opressores, todos aqueles para os quais prepotência, vício, exploração são pão de cada dia” (Gianfranco Ravasi – Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus).  Nada mais atual para os nossos tempos.
Entre a fuga e o retorno temos a narrativa da morte dos inocentes que Mateus junta, ao pranto das mães, o de Jerusalém pela morte dos seus filhos. Provavelmente não deve ter passado de um número pequeno de crianças, mesmo algumas tradições dando cifras maiores; eles representam as vítimas de todos os tempos eliminadas de todas as formas possíveis e que desconhecemos. Estão aí representadas as vítimas inocentes de todos os tempos e de todas as guerras que ainda continuamos a ver e ouvir, por culpa dos poderosos desse mundo, por um sistema de saúde ineficiente, pela negligência de muitos...
A narrativa da fuga para o Egito (Mt 2,13-15.23) trouxe consigo uma série de lendas sobre essa desventura da família de Nazaré, muitas encontradas nos evangelhos apócrifos, de uma travessia marcada por uma série de acontecimentos pitorescos que vão desde animais e bandidos até palmeiras que se curvam à passagem de ‘santo cortejo’. Tudo isso não deixa de compor um certo contraste da crua dureza da narrativa de Mateus. A fraternidade na dor de muitos, faz Cristo e Maria mais próximos de nós de um modo real e autêntico. Na nossa devoção mariana não deve faltar essa solidariedade com as dores do mundo e essa voz que se levanta, como a da Virgem no Magnificat, na busca da justiça e no testemunho dessa solidariedade divina para com os deserdados da Terra.

Herodes morre, como todos os outros tiranos, marcado por uma doença incurável e tem sua cota de dor e sofrimento. Assim Deus faz voltar seu Filho do Egito, juntamente com José e Maria e os estabelece em Nazaré, uma aldeia desconhecida do mundo bíblico, mesmo com a citação supostamente bíblica de Mateus. “Começa aqui, para Jesus e sua Mãe, a sequência das horas, dos meses, dos anos monótonos, num ambiente de província, numa existência cotidiana sem revelações e epifanias solenes de Deus. mas, para o plano divino, também Nazaré é importante; aquela Nazaré, donde ‘não se vem nada de bom’ e digno de ser registrado nos anais da História. Daqueles dias e daquelas ações simples, Jesus extrairá, como de um precioso repertório, o material simbólico para descrever o Reino de Deus: trigo e joio, mostarda e lírios, figueiras e videiras, comércio e fraude, peixes, puros e impuros segundo as regras alimentares judaicas, aves e serpentes, pais e filhos, dramas familiares e alegrias... Nazaré torna-se o sinal da presença escondida de Deus nas pequenas coisas, da palavra divina oculta nas roupagens humildes da vida simples” (Gianfranco Ravasi – Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus). Recomendo o filme “O Jovem Messias”, que retrata essa fase de Jesus, mesmo com elementos apócrifos. Continuamos nosso caminho com Jesus e Maria...

E TE CHAMAVAM MARIA... – TEXTO 21


  A apresentação do Menino ao Templo e a purificação da Mãe, conforme prescrevia a lei, aparece na narrativa de Lucas como uma consequência natural da vivência da família de Jesus em sua dinâmica de fé. Historicamente deveria situar-se antes da fuga para Egito, pois a contagem do tempo pediria uma certa ‘urgência’ antes de tal viagem. Cronologicamente alguma coisa não bate. Porque Lucas deixou tal evento fora de sua narrativa? Estamos tentando acompanhar a cronologia dos fatos, mas respeitamos o fato de algumas narrativas não estarem bem sincronizadas, pois para alguns autores, tais narrativas se revestem de um cunho simbólico mais evidente do que uma simples narrativa histórica.
  É a primeira visita de Jesus ao Templo, carregado por seus pais. Ele entra aí como um simples e pobre membro do povo de Deus, levando para o sacrifício um par de pombas. A mãe, mesmo sendo a cheia de graça, se submete as prescrições da Lei (Lv 12). “E todavia, apesar da sua simples pobreza, a cena é delineada por Lucas como se fosse impregnada de uma atmosfera festiva, litúrgica, hínica: o Menino Jesus é oferecido ao seu verdadeiro Pai celeste, do qual é verdadeiramente primogênito, ao qual pertence desde sempre; o Espírito é repetidamente apresentado enquanto atua nos dois justos, Simeão e Ana, que fazem de espectadores ativos, ‘movendo-os’ e consolando-os; Simão está feliz por receber a grande surpresa de Deus antes da sua morte, isto é, ‘o ter visto o Messias de Deus’; Ana vê a sua fé orante explodir em louvor enquanto à sua volta se apinham ‘todos os que esperam a redenção de Jerusalém’; o pai e a mãe de Jesus estão admirados e são testemunhas de um mistério glorioso e tremendo; e, por fim, Ele, o Menino que cresce e se robustece como uma flor de sabedoria e de graça, enquanto sobre toda a cena esvoaça o Espírito Santo (Lc 1,41.67; 2,25.27). A vinda de Cristo é, pois, o grande acontecimento que sacode os corações, que assusta Herodes e, com ele, Jerusalém, mas que exalta os justos. Um texto gnóstico do século III afirmava: ‘Quando surgiu o Verbo, que está no coração de todos os fiéis, produziu-se entre os vasos uma perturbação geral porque uns estavam vazios e outros cheios, uns estavam direitos e outros tombados’” (Gianfranco Ravasi – Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus). 
  Essa narrativa de que estamos falando é o evangelho da festa da Apresentação do Senhor, do dia 2 de fevereiro, festa de nossa comunidade, que encerra todo o arco das festas natalinas, apesar da distância no calendário litúrgico.  Apesar de ser uma festa do Senhor, tem uma profunda conotação mariana, pois o justo Simeão dirige-se à Mãe na segunda parte do seu oráculo, fazendo referência a uma espada que lhe atingirá particularmente. E daqui que vai surgir a famosa imagem de Nossa Senhora das Dores. Essa única espada se transformará em sete, por uma questão de plenitude simbólica: a profecia de Simão, a fuga para o Egito, a procura de Jesus no Templo entre os doutores, a Via Sacra, a crucifixão, a deposição da cruz, a sepultura. Tal contemplação e devoção estará representada na imagem da Virgem cujo coração apresenta sete espadas. Estamos no século XVII e XVIII.
  Qual seria, então, o significado deste anúncio terrível? “Maria está no centro do combate pró e contra Cristo. Também ela tem de experimentar a rejeição e a morte: e, todavia, enquanto perder, mais encontrará. A cena que melhor explica o valor simbólico desta espada é a cena que vamos considerar mais à frente, quando Maria, aos pés da cruz, perdendo o Filho, perderá tudo, e todavia tudo reaverá tornando-se a mãe da Igreja, corpo do Cristo glorioso. A lei da espada evangélica é a do perder para encontrar, da pobreza total para obter a verdadeira riqueza, do abandono a Deus na fé para ser plenamente saciado, consolado, salvo. Catarina de Sena nas suas Cartas 30 e 342 assim se dirigia a Jesus e a Maria, à luz do oráculo de Simeão e da narração da paixão segundo João: Ó dulcíssimo e diletíssimo Amor, aquele golpe que Tu recebeste no coração e na alma foi o mesmo golpe que transpassou o coração da alma da tua Mãe. O Filho era chicoteado no corpo e de modo semelhante a Mãe, pois aquela carne era dela. E era razoável que ela se condoesse como se fosse a próprias, porque Ele tinha recebido dela aquele corpo imaculado... Ó bem-aventurada e amável Maria, tu nos deste a flor do amável Jesus. E quando produziu o fruto esta doce flor? Quando foi levantado no madeiro da a santíssima cruz, porque então recebemos a vida perfeita... (Gianfranco Ravasi – Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus).
  Continuaremos o mistério desta mesma espada na fuga para o Egito. Grande abraço!    

E TE CHAMAVAM MARIA... – TEXTO 20



   Na narrativa da visita dos Magos, Maria aparece como aquela que não somente gera, mas de quem também oferece ao mundo o Filho que gerou. A visita dos Magos se reveste de caráter um tanto exótico, mas na realidade encontramo-nos diante de um texto simbólico e carregado de referências teológicas em suas referências bíblicas ao Antigo Testamento. “Estamos, pois, na presença, como no resto dos evangelhos da infância de Jesus, de uma síntese cristológica distribuída pelos fios subtis da história e sistemas de pensamentos densos e tensos. Um modo errado de ler e meditar esta página é perder de vista Cristo e Maria e deixar-nos conquistar demasiadamente pelos Magos. Foi uma tentação antiga: nas catacumbas romanas estas personagens aparecem nos frescos já no século II, dois séculos antes dos demasiados normais e modestos pastores. A tradição fez deles reis, afirmou que eram três, tornou-os racialmente diferenciados (branco, amarelo e preto), atribui-lhes nomes diferentes segundo as várias culturas (no Ocidente Gaspar, Baltasar, Melchior), disseminou-se as suas relíquias pelo mundo, nos três presentes viu sinais particulares (o ouro pela realeza de Cristo, o incenso pela divindade, a mirra pela sua paixão e morte)” (Gianfranco Ravasi – Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus).
   É em Cristo que encontramos o coração dessa narrativa que se revela a partir do local de seu nascimento e a sua origem. Mateus cita Miqueias para ressaltar que Jesus é o Messias davídico-real, anunciado pelas escrituras. E já se antecipa essa contraposição entre o bem e mal, tipificado nos Magos e Herodes, na luz e treva. Sobre Jesus e Maria se projeta o grande duelo da aventura humana: “A Belém, cidade de Davi, opõe-se Jerusalém, cidade de Herodes; à procura homicida de Herodes contrapõe-se a procura amorosa dos Magos; ao medo sucede a alegria; à interrogação: ’Onde está o rei dos Judeus?’, sucede o alegre: ‘Viram o Menino e sua Mãe’; à noite sobrepõe-se a estrela que ilumina a obscuridade; a estrela aponta mas também desaparece; os sumos sacerdotes e os escribas conhecem a verdade sobre o Messias, mas não O sabem reconhecer. Emerge, então, ao lado do acolhimento, a recusa, encarnada em Herodes, nos sacerdotes e em ‘toda a cidade de Jerusalém’” (Gianfranco Ravasi – Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus).
   Um outro elemento que chamou a atenção dos estudiosos foi a estrela que guiou os Magos, mas deixando de lado uma série de interpretações ou explicações, é o tema da luz que aqui predomina na narrativa e é particularmente ressaltado no período do Natal. Lembremos que a data de 25 de dezembro foi escolhida para substituir a festa pagã do deus Sol, a partir do século VI, lembrados que Cristo é a luz do alto que nos veio visitar, é dele que nos deixamos iluminar. Maria, tal como a Igreja, entra nessa dinâmica da luz representada pela lua na tradição medieval, aquela que não tem luz própria, mas a recebe de um Outro para a refletir. O simbolismo da luz lida também com a realidade do caminho, da vida cristã entendida como seguimento e procura, como fez os Magos, e ao mesmo tempo numa dinâmica de desapego das coisas e da inércia (contraposição aos sacerdotes de Jerusalém, que mesmo sabendo não se envolvem nem se convertem). Assim eles representam aqueles que mesmo no silêncio de Deus e no cenário de um céu que lhe esconde temporariamente o brilho da Estrela, permanece fiel e chega onde se encontram o Menino e sua Mãe.
   Aqui está o espírito que deveria acompanhar a nossa peregrinação aos santuários dedicados a Cristo e especialmente à Virgem. Não se busca, certamente, milagres, mas buscamos nesses lugares santos ver o Menino e sua Mãe e adorar o mistério de Deus que ali se revela e ao mesmo tempo se esconde. Assim como os Magos, não podemos perder vista a quem realmente buscamos em nosso peregrinar: “A luz de Cristo refletir-se-á, progressivamente, sobre nós e nos iluminará, transformando-nos à imagem da sua glória, introduzindo-nos na imortalidade. A sua estrela nos tornará estrelas cintilantes: ‘Os que tiverem sido sensatos resplandecerão como a luminosidade do firmamento’ (Dn 12,3)” (Gianfranco Ravasi – Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus).
   A narrativa dos Magos acentua a universalidade da salvação, pois estes não pertencem ao povo das promessas e mesmo assim recebem o anúncio da Boa Nova. Muitos sentimentos devem ter invadido o coração da Virgem naquela noite e sua fé será confirmada no encontro que se dará no Templo com Simeão e Ana. Até lá!  

E TE CHAMAVAM MARIA... – TEXTO 19



        Passado o período de adequação de Maria e José à nova realidade a que são chamados, e vive-se o período restante de gestação onde a Virgem vive essa intimidade de identificação: “Nestes noves meses, a Mãe, vivendo uma identificação simbiótica e uma intimidade identificante com aquele que ia germinando silenciosamente dentro dela..., experimentou algo único, que jamais se repetirá. Como sabemos, entre a gestante e a criatura de seu seio, dá-se o fenômeno da simbiose. Significa que duas vidas constituem uma só vida. A criatura respira através da mãe e daquilo que é da mãe. Alimenta-se da mãe e pela mãe, através do cordão umbilical. Numa palavra, duas pessoas com uma vida, ou uma vida em duas pessoas” (I. Larrañaga – O Silêncio de Maria – Paulinas).
         É chegada a hora do nascimento. Lucas nos oferece detalhes desse momento, colocando no espaço da história, e com toque de criatividade popular, quando do edito de Cesar Augusto e o consequente recenseamento que os leva a cidade natal de José, Belém (cf. Lc 2,4-7). A narrativa de Lucas está marcada pela pobreza e pelo despojamento de Deus ao entrar na nossa história, mesmo não havendo espaço para Ele. Ele nasce na marginalidade de uma cidade, mas tudo isso é suprido pelo acolhimento materno que o envolve em panos e deita-o na manjedoura. “Maria dá à luz na pobreza de uma manjedoura, depois da inútil procura de hospedaria. Eis aqui outro sinal das dimensões mais profundas do mistério da Encarnação: Cristo, sendo de condição divina, despojou-se de si mesmo, assumindo a condição de servo e fez-se semelhante a nós (cf. Mq 5,1-3). Maria o envolve em panos, o ama e cuida dele com toda ternura maternal. Vive momentos de profunda plenitude humana diante do mistério de uma vida surgida de suas entranhas e, ao mesmo tempo, momentos de indescritível união com Deus, a quem adora na fragilidade do Menino. O Messias nasceu – e é isto que preenche sua mente e invade seu coração” (Angel L. Strada – Maria: Um Exemplo de Mulher – Ave Maria).
Seu nascimento é saudado pelos pastores nómades que por ali estavam. “O recenseamento romano, sinal de escravatura, recorda-nos que Cristo nasce de um povo oprimido e entre aqueles pobres que os poderosos consideram peões insignificantes no xadrez de seus jogos políticos. E, no entanto, o Filho Maria está no centro do tempo e da própria família humana. Será exatamente este Menino pobre que há de marcar a história dos séculos com um ‘antes’ e um ‘depois’ d’Ele” (Gianfranco Ravasi – Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus). Os pastores, apesar da má fama na sociedade judaica, se tornam os primeiros anunciadores do nascimento de Jesus para as pessoas circunvizinhas, dando ao canto dos anjos um ecoar ainda maior.
Outro fato que marca a visão universalista desta história salvífica é a presença dos magos relatada por Mateus sobre o reconhecimento do Mesmo pelos povos pagãos. Maria testemunha essa fé dos pastores e dos magos. Cabe a ela apresentar a criança que acaba de nascer e conservar todos esses fatos em seu coração, numa meditação contínua desses eventos quase simultâneos. No próximo artigo retomaremos esse fato da visita dos magos, antes de falarmos da apresentação do Menino. Concluo com este hino (monólogo-diálogo da Virgem com o Filho) composto por Romano, o Melode, que nasceu na Síria por volta de 490 e se converteu ao cristianismo, venerado como santo nas Igrejas do Oriente:

Diz-me, Filho, como foste semeado em mim e nasceste!
Vejo-Te, ó minhas entranhas, e admiro-me.
O meu seio está cheio de leite e não sou esposa.
Vejo-Te envolvido em panos e descubro ainda intacto o selo da minha virgindade.
Foste Tu, de fato, que conservastes tal qual quando dignaste nascer,
Ó novo menino, Deus anterior dos séculos!
Ó Rei excelso, que há de comum em Ti e as nossas misérias?
Ó criador do céu, porque desces até nós, homens da terra?
Deixaste-Te encantar por uma gruta e um presépio
Te é querido?
(cintado por Gianfranco Ravasi – Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus).

E TE CHAMAVAM MARIA... – TEXTO 18



            Estranhamente o período de permanência de Maria, três meses, nos faz pensar que ela deixou Isabel assim que o menino nasceu, segundo o texto bíblico, como se ela tivesse apenas a missão de abençoar a mãe e a criança com a sua presença, longe de todas aquelas alusões que fazemos de possíveis serviços prestados. Bom, mas isso não tem muita importância. Ela retorna a Nazaré para vivenciar esse tempo de espera marcado pelo processo humano da gestação e intimidade entre mãe e filho, que aqui tem uma conotação ainda mais profunda e significativa, pois já não é tanto o filho que se identifica com a mãe, mas a mãe, numa dimensão espiritual, que se identifica com o Filho.
            Não podemos esquecer que ao lado de Maria estava José, seu esposo, segundo o registro civil da época, nos recorda Mateus (1,16). É o mesmo Mateus que nos traz o anúncio a José (cf. Mt 1,18-25) feito por um anjo, mas em sonho, conforme o cânone bíblico dos grandes anúncios bíblicos. Os dois anúncios, a José e a Maria se deu nesse espaço ou tempo preliminar de um casamento em que os dois ainda não conviviam. Podemos imaginar o embaraço ainda maior de José com tal notícia, que poderia rescindir do contrato, e já pensava fazê-lo de modo discreto, mas o anjo encaminhará seu coração enamorado para a compreensão de que não houve traição por parte de sua esposa, mas algo divino nela se dava.
            A falta de detalhes sobre como José tomou conhecimento levantou várias teorias dos interpretes, que aqui não vou abordar, mas o ser ‘justo’ de José não vai na direção da obediência à Lei, mas na reverência e no respeito por Deus e o seu desígnio.  Um poema mariano bizantino assim resume tal situação numa de suas estrofes: “Entrando dentro de uma tempestade de pensamentos/ contrastantes, o sábio já estava perturbado./ Sabendo que não ti tinha tocado,/ amores furtivos suspeitava, ó irrepreensível!/ mas quando te soube mãe por obra do Espírito Santo,/ gritou: ‘Aleluia’” (cintado por Gianfranco Ravasi – Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus).
            Mateus tem o cuidado de citar o texto de Isaias no anuncio do anjo a José (Is 7,14), talvez para combater os judeus que afirmavam a geração adúltera de Jesus por parte de Maria. Mas o texto deixa um espaço de compreensão não muito clara, pois diz que José não a conheceu (biblicamente o termo está associado à relação sexual) até o momento de dar à luz a Jesus, não considerando o período sucessivo, onde no texto aparecem os irmãos de Jesus. São João Crisóstomo, que viveu esse período de muitas discussões interpretativas nos diz numa de suas homilias sobre Mateus: “A expressão ‘sem que antes’ não deve de modo algum induzir-vos a acreditar que José tenha conhecido depois. Estas palavras indicam-nos que ele não a conheceu antes do nascimento divino. A Escritura costuma usar esta expressão ‘sem que antes’ sem pretender com ela estabelecer um tempo limitado... O evangelista serve-se desta expressão para garantir aquilo que aconteceu antes do nascimento de Jesus, deixando a vós jugar o que aconteceu. [...] Se José tivesse vivido em seguida com Maria como esposa efetiva, tendo assim filhos dela, por que razão é que Cristo no alto da cruz teria confiado a sua mãe ao discípulo, dizendo-lhe para a receber em sua casa, como se ela não tivesse ninguém para cuidar dela?” (cintado por Gianfranco Ravasi – Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus).
            É nesse quadro que temos toda a discussão da virgindade perpétua de Maria, e para alguns, a própria virgindade de José (São Jerônimo). Para não nos estendermos nessa discussão, precisamos compreender que para Mateus o fundamental era afirmar que Cristo não é fruto de amores humanos na dinâmica criatural, mas da ação direta de Deus, do Seu amor. Defender a Virgindade de Maria não exclui que entre Maria e José não tenha existido aquele vínculo de ternura e de união dos corações.
            Esse dado da Virgindade perpétua de Maria tem mais a ver com sua doação total a Deus do que com qualquer outro aspecto que tentemos defender. Aí ela aparece como modelo de entrega total, de comunhão nessa busca que fazermos de nosso cotidiano uma entrega a Deus de nosso caminho.

E TE CHAMAVAM MARIA... – TEXTO 17



Dentro de espaço da Visitação que estamos contemplando, temos o canto que Maria entoa (Magnificat), provocada pele série de elogios (bênção/bem-aventurança) de sua prima Isabel.  Um canto de louvor e gratidão que expressa o júbilo e a ação do Espírito Santo e revelam o interior de quem o canta. A primeira fonte de inspiração está justamente no que Deus fez em sua própria vida. Ela louva o Deus de sua vida, cujo olhar amoroso repousa sobre sua pequenez. Ele não é um Deus distante, mas caminha ao seu lado. Ele a faz feliz e ela exulta, pois a sua existência está cercada desse olhar misericordioso, sob o qual pode ver a sua própria realidade.
O canto de Maria aparece em íntima ligação com o cântico de Ana, mãe de Samuel (1Sm 2) em sua matriz bíblica, numa série de referências, expressão de uma atitude de profunda pobreza na espiritualidade bíblica, tocando também a sua dimensão social: “O pobre é humilde, doente, oprimido, é a viúva e o órfão, é o contrário do rico e poderoso, mas é também e sobretudo aquele que radica a sua confiança unicamente em Deus e não no poder do homem, no orgulho e na soberba, no ídolo do dinheiro” (Gianfranco Ravasi – Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus). Dentro dessa dimensão Maria eleva a sua voz, pois ela tudo espera e recebe das mãos de Deus.
Maria profetiza seu testemunho para as futuras gerações: “Se a humildade é verdade, aqui temos um testemunho autêntico de humildade e veracidade. Maria não se autopromove, mas tampouco é vítima de complexos e inibições. Com olhar objetivo, reconhece os dons recebidos. Ela estará na história dos homens como sinal visível e perpétuo da ação de Deus em favor de todos. Ao recordá-la, estarão se lembrando de um Deus que cumpre as suas promessas. Ao venerá-la, poderão facilmente encontrar-se com o Deus da misericórdia e da salvação. Mas será também lembrança e veneração de uma criatura, de uma mulher que deu o seu Sim e cooperou como ninguém na salvação dos seus irmãos. A história posterior se encarregou de demonstrar que Maria não se enganou, quando profetizou sobre si mesma” (Angel L. Strada – Maria: um exemplo de mulher – Ave Maria).    
O canto de Maria passa a fazer parte da oração da Igreja que continuamente exalta o modo como Deus atua na história da humanidade não através do poder, mas de simples instrumentos, muitas vezes esquecidos no tempo e na história.  Seguindo a esteira do agir de Cristo, que entra em nossa história em condições de pobreza e de uma mulher pobre. Recordemos o modo como foi se delineando as pequenas comunidades primitivas. Em como viveu Paulo e sua constante preocupação pelos mais pobres. Maria nos faz também lembrar, e nos inspirar, que toda autêntica oração cristã alimenta-se das Escrituras, onde o próprio Deus se compromete com o pequeno e o humilde, e nos convida a amparar, a ajudar, a acolher os sofredores.
O Magnificat carrega também consigo uma forte esperança na ação de Deus, capaz de inverter os processos injustos da história. Traz em seu coração as esperanças do seu povo e vê realizada em sua pessoa toda uma promessa anunciada desde Abraão. Ao mesmo tempo louva e reconhece as grandes ações de Deus na história salvífica, Sua fidelidade e misericórdia. E podemos dizer que como novo povo de Deus, apoiados em seu canto, aguardamos também a plenitude do Reino anunciado por Jesus.
Como havíamos mencionados essa comparação entre Maria e a Arca da Aliança, Lucas menciona um detalhe interessante: Maria permaneceu ainda três meses na casa de Isabel, o mesmo tempo que passou na casa de Obededon (cf. 2Sm 6,11). Isabel é também abençoada por essa presença santa de Maria, sede da perfeita presença de Deus no meio dos homens. Concluo com as palavras de Lutero em suas anotações sobre o Magnificat: “Ela quer ser o maior exemplo da graça de Deus para poder incitar-nos a todos a termos confiança e a louvarmos a graça divina. Todos os corações deveriam, através dela, adquirir uma tal confiança que pudessem dizer: Deus não nos desprezará mas olhará benignamente para nós, homens pobres e mesquinhos... [...] Ó bem-aventurada Virgem, Mãe de Deus, que grande consolação Deus nos mostrou em ti! Tendo Ele olhado com tanta graça para a tua humildade e nulidade, recorda-nos assim que Ele não desprezará, mas olhará graciosamente para nós, homens pobres, que seguimos teu exemplo...” 


E TE CHAMAVAM MARIA... – TEXTO 16



       Depois da revelação do anjo de que Isabel também fora visitada por Deus, Maria parte às pressas para visitar sua prima em Ain Karim (segundo a tradição), na região de Judá, povoado que ficava a dois dias de caminhada, próximo de Jerusalém. Essa caminhada de Maria entre as montanhas fez recordar a alguns uma passagem do segundo livro de Samuel (2Sm 6), onde se fala da peregrinação da Arca da aliança, transportada por Davi, que pulava e dançava em frente a arca e gerou grande alegria em todo o Israel. Há quem veja uma referência de Lucas a esse fato quando fala da alegria que invade Isabel, fazendo a criança pular em seu ventre.
       Entende-se neste gesto de Maria o serviço da caridade, a serva coloca em ação a sua disposição de servir e compartilhar com Isabel sua alegria. “Maria vai prestar ajuda e, como boa dona-de-casa, atende às necessidades de um matrimônio já ancião em vésperas do nascimento de um filho. É a Virgem serviçal, aquela que não vacila em abrir-se para os demais, a fim de compartilhar com eles suas alegrias e dores. A serva do Senhor torna-se serva dos seus semelhantes. Não podia ser de outro modo, porque não há separação entre entrega a Deus e compromisso com os homens. O primeiro mandamento de Jesus encontra em Maria uma encarnação digna de admiração e respeito: o amor a Deus é fonte de amor ao próximo, e este é consequência e selo de autenticidade daquele. Seu maior serviço – a aceitação da missão maternal – impele Maria a esta outra forma de maternidade: o serviço desinteressado em prol dos demais. O mistério da Anunciação tem seu prolongamento e complemento naquele da Visitação” (Angel L. Strada – Maria: um exemplo de mulher – Ave Maria).
       Esse ir ao encontro de Isabel e Zacarias imprime em Maria essa característica que o Papa Francisco pede para a Igreja de nosso tempo: saída. Maria evangeliza no seu ato de comunicar a sua experiência de intimidade com Deus e consequente transformação de sua vida. Se ela é a primeira receptora do Evangelho, faz-se também instrumento privilegiado de comunicação desse mesmo Evangelho. Há quem suponha que a ida de Maria à casa de Isabel tenha o caráter de confirmação do que havia dito o anjo, sim assim o foi certamente não tinha o caráter da dúvida de Zacarias. Santo Ambrósio rejeita tal ideia, segundo ele ela já havia acreditado no momento do anúncio.
       Nessa característica própria de Lucas, toda a cena é inundada de uma alegria que só a presença e a ação do Espírito Santo é capaz de provocar, pois tanto Isabel como Maria achavam-se ainda sob o efeito das visitas de Deus em suas vidas. “O Espírito não encontra barreiras nestas mulheres cheias de fé e atua nelas com plenitude, santificando também a experiência mais formosa de suas vidas: a maternidade” (Angel L. Strada – Maria: um exemplo de mulher – Ave Maria).
       Isabel chama Maria de ‘bendita entre as mulheres’. “Embora possa recordar mulheres ilustres (Jael, Jz 5,24; Judite, Jt 13,18; Abigail, 1Sm 25,33), o contexto próximo nos convida a pensar na bênção genesíaca da fecundidade (Gn 1,28; 9,1; 17,16; Dt 28,4). Nenhuma maternidade da história pode ser comparada com a de Maria; a ela estava direcionada muitas maternidades precedentes” (Bíblia do Peregrino – Paulus). No louvor de Isabel brota a primeira bem aventurança do evangelho de Lucas é dirigida a Maria: “Feliz és tu que acreditaste” (Lc 1,45). “O valor da bem-aventurança é a afirmação de uma ‘plenitude de graça’ e de salvação operada por Deus no ‘bem-aventurado’. ‘É a exaltação com o louvor de um homem por motivo da sua condição de salvação que o torna bem-aventurado e o aponta como exemplo’ (M. Saebo). Há, pois, um aspecto de alegria, de contemplação, de admiração pela ação divina numa criatura; mas há também o aspecto de imitação que nasce da admiração: o ‘bem-aventurado’ é um exemplo de vida para quem o celebra. De fato, Maria é definida com a ‘Crente’ por excelência, ou seja, aquela que nos oferece um exemplo perfeito de fé” (Gianfranco Ravasi – Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus).
       Com Maria, continuaremos na casa de Isabel. Ainda temos alguns detalhes a contar desse encontro. Até mais!

E TE CHAMAVAM MARIA... – TEXTO 15


       Vimos no artigo anterior que o Anjo esclarece a Maria sobre a missão que é chamada a viver a partir dessa realidade da maternidade, dom supremo. A tudo isso ela responde declarando-se ‘serva do Senhor’. Mais que um simples ato de humildade, trata-se do reconhecimento, conforme o Antigo Testamento, de sua função de realizar um chamado em sua vida, apesar de sua condição de mulher simples e normal, que fará parte do plano divino da salvação, assim com fez Abraão, Moisés, Josué, David, os profetas... Jesus tomará para si esse mesmo título de ‘Servo do Senhor’ com todas as suas consequências, como acompanhamos nos dias de Sua Paixão e a liturgia nos lança ao coração da imagem do ‘servo sofredor’ de Isaias. Fazendo eco ao que viverá o Filho, a Mãe se antecipa: “Faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38). Em liberdade, depois de certo silêncio, ela dá o seu assentimento. E aqui não está em jogo apenas uma busca de santificação pessoal, mas o início de uma nova etapa da relação entre Deus e o ser humano. Como sempre, Deus não realiza essa história de salvação sozinho, mas pede a livre colaboração humana.
       Maria não se fecha em si mesma: “O consentimento de Maria é um profundo ato de fé. A Virgem ouvinte da Palavra é a Virgem crente no amor fiel de Deus. Maria sabe que não se entrega à vontade fria e impessoal de um Deus que lhe dita ordens à distância. Adere às disposições do Deus que a ama pessoalmente. Tanto é assim que o prometido ‘Deus-conosco’ é agora o ‘Deus-comigo’, aquele que está em seu coração e em seu seio. A fé de Maria não é, em primeiro lugar, a aceitação de verdade, nem o acatamento de preceitos morais. É, antes de mais nada, uma atitude de vida. No reconhecimento pleno de Deus, que atua realmente em sua vida e na obediência à sua vontade, essa fé expressa em sumo grau a atitude crente da Virgem”  (Angel L. Strada – Maria: um exemplo de mulher – Ave Maria).
       Assim, no dizer de Ambrósio, bispo de Milão, Maria corrige o erro de Zacarias, a incredulidade, ao tempo que revela a sua personalidade. Uma fé sem fissura, sua modéstia, seu pudor e sua prudência. Não nos é difícil perceber esse ambiente de silêncio que se instala nesse diálogo do Anjo com Maria. Ela permite que essa Palavra vá entrando em seu coração, sem precipitar-se com opiniões pessoais. Senhora de si, ela acolhe em seu interior toda essa revelação. Na sua liberdade, compromete-se em seguir o plano traçado por Deus para a sua vida. No que Deus lhe pede ela encontrará a sua realização pessoal e a felicidade autêntica e plena que o ser humano só encontra no próprio Deus.
       É importante tomar consciência de que essa atitude de entrega de Maria ao plano divino tenha se dado como decisão radical no momento da Anunciação do anjo. Ela já trazia em si uma história da ação da graça e da disposição pessoal em se consagrar ao Senhor. O que ela deseja vem ao seu encontro, e ela se decide, em sua liberdade, tornar efetiva a sua entrega. Só nesse âmbito podemos compreender a sua prontidão em responder ao chamado e ao mesmo tempo encontrar a plena liberdade em sua dependência filial.

       Não podemos esquecer que o anjo ofereceu a Maria um sinal do que Deus é capaz de realizar: Isabel, sua parenta, acabava de conceber em sua velhice. O que em Isabel vinha por via ordinária, em Maria se dava de maneira extraordinária. São caminhos diferentes para um mesmo objetivo: a salvação que Deus quer oferecer a humanidade. Assim damos um passo mais adiante nessa caminhada que estamos fazendo com a Virgem, para que a nossa devoção seja um reconhecimento contemplativo desse instrumento divino para nossa salvação que se fez serva não de modo passivo, mas como uma verdadeira cooperadora da salvação humana em livre fé e obediência. Nos encontraremos com Maria e Isabel. Até lá! 
         

E TE CHAMAVAM MARIA... – TEXTO 14


       Ainda estamos no ambiente da Anunciação, do diálogo do anjo com Maria. Os anjos são instrumentos nas mãos de Deus para o anúncio e realização dos seus planos. Os veremos bastantes atuantes não só em Lucas, também em Mateus nos sonhos de José e no deserto da tentação como em Marcos. São portas vozes da vontade divina. O anjo vai ao encontro da Virgem. Ela ouve a voz que a cumprimenta. Aqui aparece a iniciativa divina tanto quanto o caráter de interioridade do diálogo que aqui se trava.
     Entrando onde ela se encontra, a saúda:  “Ave, cheia de graça!”. Mais que uma simples saudação, temos um convite à alegria pela presença salvadora de Deus, alegria de caráter íntimo de quem reconhece ação de Deus. O anjo não a chama pelo nome, mas dá-lhe um novo nome: “Cheia de graça”, algo único e excepcional, não só pelo seu estado físico e espiritual, mas por causa de sua missão única e irrepetível. “Rigorosamente falando, trata-se de um particípio passivo que tem Deus como objeto subtendido: tu foste cumulada de graça para poderes acolher o Filho de Deus no teu seio. Surge, assim, em Maria a iniciativa divina; brilha a graça; manifesta-se o amor de Deus” (Gianfranco Ravasi – Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus).
    Prossegue o anjo afirmando: “O Senhor é contigo”. Deus a escolheu na gratuidade de Sua iniciativa amorosa. Quando Deus comunica sua graça, produz um estar-com-Ele e n’Ele, Ele doa-se a Si mesmo. Nela habita a plenitude da graça que é possível a um ser humano redimido. Deus lhe será fiel, diz o anjo, auxiliando-a em sua missão, como o fez no passado ao usar a mesma expressão aos grandes personagens do seu povo. “O Senhor, porque ama, não deixará Maria sozinha. Porque quer confiar-lhe uma tarefa, adianta-se, garantindo-lhe a continuidade de sua ajuda fiel. Porque é Pai, revela seu amor feito de intimidade pessoal e de confiança na generosidade do filho, tornada possível por sua permanente assistência” (Angel L. Strada – Maria: um exemplo de mulher – Ave Maria).
  Lucas menciona a ‘perturbação’ da Virgem diante dessas palavras iniciais, pois não conseguia compreender exatamente o que o anjo estava lhe falando. Sua atitude é altamente respeitosa diante do mistério que a ela se apresenta. O anjo convida-a a não temer, chamando-a pelo nome e a uma atitude filial, que marcará a partir de Jesus, esse encontro da humanidade com Deus. Por várias vezes esse convite de não temer virá dos lábios de Jesus, convidando ao exercício da confiança no amor do Pai. O anjo antecipa-se a lhe revelar o objetivo de sua visita: sua concepção de um filho que se chamará Jesus, numa clara alusão ao profeta Isaías (7,14) e revertendo o costume judaico de ser o pai a dar o nome ao filho. De ‘Emanuel’ (Deus conosco) passa-se a Jesus (Deus salva). Em meio a sua inquietação ela compreende que será mãe do Messias prometido.
      Dentro de uma lógica que demonstra não ser ingênua ela questiona tal maternidade já que se conservava Virgem também no corpo. Não no sentido da dúvida ou incredulidade, como fez Zacarias um pouco antes. Ela quer saber de maneira concreta como isso se dará sem as vias normais das relações conjugais. Ele lhe explica que tal evento se dará pela mera ação divina, à sombra do Espírito Santo. Aqui se faz uma clara alusão à nuvem que simboliza a presença divina: “Lucas vê repropor-se em Maria de modo pleno e perfeito a tipologia da arca da aliança e da filha de Sião, que delineamos nas figuras vetero-testamentárias. Tal como a nuvem cobria o povo eleito em marcha pelo deserto (Nm 10,34; Dt 33,12; Sl 19,4), tal como a nuvem, sinal do mistério de Deus, dominava sobre a arca da aliança (Ex 40,35), tal como o Espírito de Deus soprava sobre o caos da criação (Gn 1,2; Sl 104,30), assim agora a sombra e o Espírito do Altíssimo envolvem e penetram este tabernáculo da nova aliança que é o seio de Maria. É sugestivo o paralelo entre o relato de Lucas e o texto já citado do profeta Sofonias” (Gianfranco Ravasi – Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus).

“Rejubila, filha de Sião, o Senhor, rei de Israel, está no meio de ti. Não temas Sião... O Senhor, teu Deus, está contigo, o Poderoso te salvará” (Sf 3,14-17).

“Salve, ó cheia de graça, o Senhor está contigo. Não temas Maria... Hás de conceber no teu seio e dar à luz um filho” (Lc 1,28.30.31).

E TE CHAMAVAM MARIA... – TEXTO 13


    Chegou o momento de nos debruçarmos sobre as páginas do Novo Testamento, onde pouco se fala de Maria, mas nesse pouco nos é oferecido uma espécie de radiografia de sua alma. Iniciamos por Lucas 1,26-28: “O Anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um homem chamado de José, da casa de Davi; e o nome da virgem era Maria. Ao entrar em casa dela, o anjo disse-lhe: ‘Salve, cheia de graça, o Senhor está contigo...’”.
    Quem de nós, meditando essas palavras no 1º mistério Gozoso, não se coloca a imaginar em que circunstâncias esse primeiro encontro se deu. Alguns pensam, e pintam, a Virgem, num recinto, recolhida, onde o Anjo entra e reverentemente inicia um diálogo. Outros a imaginam sendo surpreendida numa fonte onde está a buscar água, sozinha. Entre a atitude de recolhimento e das tarefas do dia a dia, gostaríamos de saber como se deu o anúncio. Os artistas tentam satisfazer a nossa curiosidade contemplativa nas várias expressões espalhadas pelo mundo inteiro. Mas é necessário que compreendamos que para além da poesia inspiradora, estamos diante de uma página da Escritura com profundo ‘sabor’ teológico. Nosso olhar e pensamento se voltam para Maria, mas é a Cristo que essa página quer apresentar, tanto que na festa da Anunciação do Senhor (25 de março), o caráter cristológico é que predomina na liturgia.
    A aldeia de Nazaré era um espaço insignificante na geografia da antiga Palestina. As pobres residências ali erguidas estavam encostadas às montanhas ou montes em cujas grutas eram aproveitas como despensa, como residência estival e invernal, como quarto de hóspede. É neste espaço que podemos imaginar que se tenha dado o encontro entre o divino e o humano, cancelando a antiga distância delimitada. É provável que a Virgem tivesse uns doze anos, segundo os costumes nupciais da época. Não podemos precisar. O relato que nos é apresentado remonta a outras narrativas do Antigo Testamento, do anúncio de outros nascimentos gloriosos. Lucas bebe dessas fontes e nos lembra, de novo, que no centro dessa narrativa está Jesus: Filho do Altíssimo, Filho de Deus, Santo, dirá o Anjo.
    Ao lado deste Filho, eis a mãe. Chamada de virgem, pois não conhece homem, diz ela. E aqui a imaginação de vários autores atribuem à Virgem um possível voto de castidade ou até de virgindade dentro do próprio seio do matrimônio por causa do oráculo de Is 7,14. Nas narrativas do Antigo Testamento, como no caso de Isabel, havia o fator de esterilidade. Enfim, não importa a teoria a ser defendida, a preocupação aqui é deixar claro que o concebimento de Jesus exclui o sémen humano, Ele é filho de Deus que em Maria opera através do seu Espírito, tornando-a fecunda e grávida (recordemos a figura da pomba em muitas pinturas...). “Na anunciação do nascimento de João batista encontramo-nos perante um ardente desejo por parte dos pais que sentem muito a falta de um filho; Maria, pelo contrário, é virgem, ainda não viveu com o marido, não tem esse ardente e humano desejo: para ela trata-se de uma surpresa. Não se está perante uma súplica por parte do ser humano e respectivo atendimento generoso por parte de Deus. Aqui, encontramo-nos perante a iniciativa de Deus que ultrapassa qualquer sonho por parte do homem ou da mulher” (R. E. Brown – La nascita del Messia – Cittadella, Assis, 1981).
    “Com São Bernardo dirigimo-nos também a Maria para que acolha o anúncio: ‘O anjo espera tua resposta, ó Maria! Esperamos também nós, ó Senhora, este teu dom que é dom de Deus. Está nas tuas mãos o preço do nosso resgate. Responde depressa, ó Virgem! Pronuncia, ó Senhora, a palavra que a terra e o céu esperam. Dá a tua palavra e acolhe a Palavra; diz a tua palavra humana e concebe a Palavra de Deus; pronuncia a tua palavra que passa e estreita no teu seio a Palavra que é eterna... abre, portanto, ó Virgem bendita, o teu coração À fé, os teus lábios à palavra, o teu seio ao Criador. Eis, aquele que é o desejo de todas gentes, está fora e bate à tua porta... Levanta-te, corre, abre! Levanta-te com tua fé, corre com teu afeto, abre com o teu consentimento’” (Gianfranco Ravasi – Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus).

    Essa história continua...

E TE CHAMAVAM MARIA... – TEXTO 12



“De alegria vibrei no Senhor, pois vestiu-me com sua justiça. Adornou-me com joias bonitas, como esposa do Rei me elevou”.

            Abrimos nossa primeira reflexão desse ano e a última dos textos referenciais do Antigo Testamento,  com o refrão desse canto litúrgico para as festas marianas de nossa Igreja, muito cantado no passado. Na base de sua inspiração estão os textos de Is 61,10; 62,5, que parece ter inspirado o Magnificat de Lucas em sua abertura. O texto fala de Jerusalém, que personifica essa ‘esposa’ que ergue a Deus (esposo/rei) o seu hino de louvor e de ação de graças.
            O texto trabalha a simbologia da ‘veste’ (‘vestir’, ‘envolver-se’, ‘adornar-se’), mas a veste é de salvação. A simbologia nupcial se faz presente, já tão bem trabalhada em outros textos (Oseias, Ezequiel, Cântico dos Cânticos), aqui trata-se de uma festa nupcial de caráter real. “A dimensão festiva, que tem conotações messiânicas, brilha no início do poema, que se mostra aparentado com o de Ana, já examinado: ‘O meu coração exulta no Senhor..., alegro-me pelos benefícios que nos concedeu’ (1Sm 2,1). A este princípio do poema fará eco também o Magnificat: ‘O meu espírito exulta em Deus meu Salvador’ (Lc 1,47). De Deus brota a alegria salvífica, dele nasce a esperança num horizonte novo e luminoso, nele tem origem o amor nupcial que ligará a Sião e a Israel” (Gianfranco Ravasi – Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus).
            É partindo desse sentido de uma relação íntima que se estabelece entre Deus e Sião, pois fala de nupcialidade e fecundidade, que se aplica uma chave mariana, a quem o anjo convida a alegrar-se e que será envolvida pela “sombra do Altíssimo” (Lc 1,35). A sua maternidade divina gera salvação (Lc 1,69.77; 2,30). O seio de Sião, sinal de fecundidade sagrada, torna-se o seio de Maria da qual nasce a Vida mesma, o Rebento Messiânico (Lc 1,42).
         O texto que certamente já ouvimos em alguma liturgia mariana compreende Is 61,1-5. Assim temos esta última imagem de Maria, convidada a viver essa entrega ao seu Deus, como uma esposa, eleita, preferida. “Saudemos, então, Maria Esposa e Mãe, no final desta primeira galeria de quinze ícones delineados com cores transfiguradas do Antigo Testamento: Maria, nova Eva; Maria, sarça-ardente e inextinguível; Maria, nova Débora; Maria, velo de Gedeão; Maria, nova Rute; Maria, nova Ana; Maria, arca da nova Aliança; Maria, filha de Sião; Maria, nova Judite; Maria, nova Ester; Maria, Esposa e Mãe” (Gianfranco Ravasi – Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus).

            Encerrando essa etapa e abrindo-nos ao Novo Testamento e a um novo ano que se inicia, transcrevo aqui a oração de D. António Couto, que pede à Virgem a bênção para o novo ano: “Mãe de Deus, Senhora da Alegria, Mãe Igual ao Dia, Maria. A primeira página do ano é tua, Mulher do sol, das estrelas e da lua, Rainha da Paz, Aurora da Luz, Estrela matutina, Mãe de Jesus e também minha, Senhora de janeiro, do Dia Primeiro e do Ano inteiro. Abençoa, Mãe, os nossos breves dias. Ensina-nos a vive-los todos como os teus, sempre sob o olhar de Deus. É verdade. A grande verdade da tua vida, o teu segredo de ouro. Tu soubeste que Deus velava por ti, enchendo-te de graça. Mas tu soubeste sempre olhar por Deus, porque tu soubeste bem que Deus também é pequenino. Acariciada por Deus, viveste acariciando Deus. Por isso, todas as gerações te proclamam ‘Bem-aventurada’! Por isso, nós te proclamamos ‘Bem-aventurada’! Senhora e Mãe de janeiro, do Dia Primeiro e do Ano inteiro.  Acaricia-nos. Senta-nos em casa ao redor do amor, do coração. Somos tão modernos e tão cheios de coisas estes teus filhos de hoje! Tão cheios de coisas e tão vazios de nós mesmos e de humanidade e divindade! Temos tudo. Mas falta-nos, se calhar, o essencial: a tua simplicidade e alegria. Faz-nos sentir, Mãe, o calor de tua mão no nosso rosto frio, insensível, enrugado, e faz-nos correr, com alegria, ao encontro dos pobres e necessitados. Que seja, e pode ser, Deus o quer, e nós também podemos querer, um Ano Bom, cheio de Paz, Pão, amor, para todos os irmãos que Deus nos deu! E que Santa Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe nos abençoe também. Amém” D. António Couto.