Chegou o momento de nos
debruçarmos sobre as páginas do Novo Testamento, onde pouco se fala de Maria,
mas nesse pouco nos é oferecido uma espécie de radiografia de sua alma.
Iniciamos por Lucas 1,26-28: “O Anjo
Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia chamada Nazaré, a uma
virgem desposada com um homem chamado de José, da casa de Davi; e o nome da
virgem era Maria. Ao entrar em casa dela, o anjo disse-lhe: ‘Salve, cheia de
graça, o Senhor está contigo...’”.
Quem de nós, meditando essas palavras no 1º mistério
Gozoso, não se coloca a imaginar em que circunstâncias esse primeiro encontro
se deu. Alguns pensam, e pintam, a Virgem, num recinto, recolhida, onde o Anjo
entra e reverentemente inicia um diálogo. Outros a imaginam sendo surpreendida
numa fonte onde está a buscar água, sozinha. Entre a atitude de recolhimento e
das tarefas do dia a dia, gostaríamos de saber como se deu o anúncio. Os
artistas tentam satisfazer a nossa curiosidade contemplativa nas várias
expressões espalhadas pelo mundo inteiro. Mas é necessário que compreendamos
que para além da poesia inspiradora, estamos diante de uma página da Escritura
com profundo ‘sabor’ teológico. Nosso olhar e pensamento se voltam para Maria,
mas é a Cristo que essa página quer apresentar, tanto que na festa da
Anunciação do Senhor (25 de março), o caráter cristológico é que predomina na
liturgia.
A aldeia de Nazaré era um espaço insignificante na
geografia da antiga Palestina. As pobres residências ali erguidas estavam
encostadas às montanhas ou montes em cujas grutas eram aproveitas como
despensa, como residência estival e invernal, como quarto de hóspede. É neste
espaço que podemos imaginar que se tenha dado o encontro entre o divino e o humano,
cancelando a antiga distância delimitada. É provável que a Virgem tivesse uns
doze anos, segundo os costumes nupciais da época. Não podemos precisar. O
relato que nos é apresentado remonta a outras narrativas do Antigo Testamento,
do anúncio de outros nascimentos gloriosos. Lucas bebe dessas fontes e nos
lembra, de novo, que no centro dessa narrativa está Jesus: Filho do Altíssimo, Filho de Deus, Santo, dirá o Anjo.
Ao lado deste Filho, eis a mãe. Chamada de virgem, pois
não conhece homem, diz ela. E aqui a imaginação de vários autores atribuem à
Virgem um possível voto de castidade ou até de virgindade dentro do próprio
seio do matrimônio por causa do oráculo de Is 7,14. Nas narrativas do Antigo
Testamento, como no caso de Isabel, havia o fator de esterilidade. Enfim, não
importa a teoria a ser defendida, a preocupação aqui é deixar claro que o
concebimento de Jesus exclui o sémen humano, Ele é filho de Deus que em Maria
opera através do seu Espírito, tornando-a fecunda e grávida (recordemos a
figura da pomba em muitas pinturas...). “Na
anunciação do nascimento de João batista encontramo-nos perante um ardente
desejo por parte dos pais que sentem muito a falta de um filho; Maria, pelo
contrário, é virgem, ainda não viveu com o marido, não tem esse ardente e
humano desejo: para ela trata-se de uma surpresa. Não se está perante uma
súplica por parte do ser humano e respectivo atendimento generoso por parte de
Deus. Aqui, encontramo-nos perante a iniciativa de Deus que ultrapassa qualquer
sonho por parte do homem ou da mulher” (R. E. Brown – La nascita del Messia – Cittadella, Assis, 1981).
“Com São Bernardo
dirigimo-nos também a Maria para que acolha o anúncio: ‘O anjo espera tua
resposta, ó Maria! Esperamos também nós, ó Senhora, este teu dom que é dom de
Deus. Está nas tuas mãos o preço do nosso resgate. Responde depressa, ó Virgem!
Pronuncia, ó Senhora, a palavra que a terra e o céu esperam. Dá a tua palavra e
acolhe a Palavra; diz a tua palavra humana e concebe a Palavra de Deus;
pronuncia a tua palavra que passa e estreita no teu seio a Palavra que é
eterna... abre, portanto, ó Virgem bendita, o teu coração À fé, os teus lábios
à palavra, o teu seio ao Criador. Eis, aquele que é o desejo de todas gentes,
está fora e bate à tua porta... Levanta-te, corre, abre! Levanta-te com tua fé,
corre com teu afeto, abre com o teu consentimento’” (Gianfranco Ravasi – Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus).
Essa história continua...