E TE CHAMAVAM MARIA... – TEXTO 21


  A apresentação do Menino ao Templo e a purificação da Mãe, conforme prescrevia a lei, aparece na narrativa de Lucas como uma consequência natural da vivência da família de Jesus em sua dinâmica de fé. Historicamente deveria situar-se antes da fuga para Egito, pois a contagem do tempo pediria uma certa ‘urgência’ antes de tal viagem. Cronologicamente alguma coisa não bate. Porque Lucas deixou tal evento fora de sua narrativa? Estamos tentando acompanhar a cronologia dos fatos, mas respeitamos o fato de algumas narrativas não estarem bem sincronizadas, pois para alguns autores, tais narrativas se revestem de um cunho simbólico mais evidente do que uma simples narrativa histórica.
  É a primeira visita de Jesus ao Templo, carregado por seus pais. Ele entra aí como um simples e pobre membro do povo de Deus, levando para o sacrifício um par de pombas. A mãe, mesmo sendo a cheia de graça, se submete as prescrições da Lei (Lv 12). “E todavia, apesar da sua simples pobreza, a cena é delineada por Lucas como se fosse impregnada de uma atmosfera festiva, litúrgica, hínica: o Menino Jesus é oferecido ao seu verdadeiro Pai celeste, do qual é verdadeiramente primogênito, ao qual pertence desde sempre; o Espírito é repetidamente apresentado enquanto atua nos dois justos, Simeão e Ana, que fazem de espectadores ativos, ‘movendo-os’ e consolando-os; Simão está feliz por receber a grande surpresa de Deus antes da sua morte, isto é, ‘o ter visto o Messias de Deus’; Ana vê a sua fé orante explodir em louvor enquanto à sua volta se apinham ‘todos os que esperam a redenção de Jerusalém’; o pai e a mãe de Jesus estão admirados e são testemunhas de um mistério glorioso e tremendo; e, por fim, Ele, o Menino que cresce e se robustece como uma flor de sabedoria e de graça, enquanto sobre toda a cena esvoaça o Espírito Santo (Lc 1,41.67; 2,25.27). A vinda de Cristo é, pois, o grande acontecimento que sacode os corações, que assusta Herodes e, com ele, Jerusalém, mas que exalta os justos. Um texto gnóstico do século III afirmava: ‘Quando surgiu o Verbo, que está no coração de todos os fiéis, produziu-se entre os vasos uma perturbação geral porque uns estavam vazios e outros cheios, uns estavam direitos e outros tombados’” (Gianfranco Ravasi – Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus). 
  Essa narrativa de que estamos falando é o evangelho da festa da Apresentação do Senhor, do dia 2 de fevereiro, festa de nossa comunidade, que encerra todo o arco das festas natalinas, apesar da distância no calendário litúrgico.  Apesar de ser uma festa do Senhor, tem uma profunda conotação mariana, pois o justo Simeão dirige-se à Mãe na segunda parte do seu oráculo, fazendo referência a uma espada que lhe atingirá particularmente. E daqui que vai surgir a famosa imagem de Nossa Senhora das Dores. Essa única espada se transformará em sete, por uma questão de plenitude simbólica: a profecia de Simão, a fuga para o Egito, a procura de Jesus no Templo entre os doutores, a Via Sacra, a crucifixão, a deposição da cruz, a sepultura. Tal contemplação e devoção estará representada na imagem da Virgem cujo coração apresenta sete espadas. Estamos no século XVII e XVIII.
  Qual seria, então, o significado deste anúncio terrível? “Maria está no centro do combate pró e contra Cristo. Também ela tem de experimentar a rejeição e a morte: e, todavia, enquanto perder, mais encontrará. A cena que melhor explica o valor simbólico desta espada é a cena que vamos considerar mais à frente, quando Maria, aos pés da cruz, perdendo o Filho, perderá tudo, e todavia tudo reaverá tornando-se a mãe da Igreja, corpo do Cristo glorioso. A lei da espada evangélica é a do perder para encontrar, da pobreza total para obter a verdadeira riqueza, do abandono a Deus na fé para ser plenamente saciado, consolado, salvo. Catarina de Sena nas suas Cartas 30 e 342 assim se dirigia a Jesus e a Maria, à luz do oráculo de Simeão e da narração da paixão segundo João: Ó dulcíssimo e diletíssimo Amor, aquele golpe que Tu recebeste no coração e na alma foi o mesmo golpe que transpassou o coração da alma da tua Mãe. O Filho era chicoteado no corpo e de modo semelhante a Mãe, pois aquela carne era dela. E era razoável que ela se condoesse como se fosse a próprias, porque Ele tinha recebido dela aquele corpo imaculado... Ó bem-aventurada e amável Maria, tu nos deste a flor do amável Jesus. E quando produziu o fruto esta doce flor? Quando foi levantado no madeiro da a santíssima cruz, porque então recebemos a vida perfeita... (Gianfranco Ravasi – Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus).
  Continuaremos o mistério desta mesma espada na fuga para o Egito. Grande abraço!