E TE CHAMAVAM MARIA – 32


A primeira e mais fundamental afirmação do dogma católico sobre Maria é a maternidade divina. A própria Sagrada Escritura o atesta na narrativa da Anunciação, na visita a Isabel, do próprio Paulo que reconhece a vinda do Filho de Deus através de uma mulher e com isso a preexistência do mesmo Filho. Que entra na nossa história em igual processo humano através de uma mulher e Maria é eleita para essa missão excepcional. Isso é história.
Essa maternidade de Maria sempre esteve presente na Tradição. No Credo, na doutrina dos Santos Padres, na fé do povo. Essa fé na maternidade divina de Maria é consequência da própria compreensão do mistério de Cristo num processo de proteção e enriquecimento recíprocos. É no século V que esse processo alcança um dos seus pontos culminantes.  Temos a discussão se Maria teria gerado tão somente o homem Cristo ao qual, posteriormente o Verbo se teria unido (Nestório, bispo de Constantinopla desde 428, é o principal expoente desse pensamento). Tal pensamento negaria a realidade da Encarnação, significando uma espécie de justaposição e não verdadeira união.
A escola de Alexandria (São Cirilo), reage contra a doutrina de Nestório e assim, o Concílio de Éfeso, realizado em 431, rejeita tal doutrina e confirma que é um e o mesmo aquele que é gerado pelo Pai desde a eternidade e aquele que nasceu da Maria como homem. Assim, pode se afirmar que Maria é Mãe de Deus, porque Cristo é verdadeiro Deus e é verdadeiro homem na realidade de um único sujeito pessoal: o Verbo. Assim declara o Concílio: "Porque não nasceu primeiramente um homem comum, da Virgem Santa, e depois desceu sobre ele o Verbo. Porém, unido desde o seio materno, diz-se que se submeteu a nascimento carnal como alguém que faz seu nascimento da própria carne... Dessa maneira, (os Santos Padres) não acharam inconveniente chamara a Virgem Santa de Mãe de Deus”. Anos depois, o Concílio de Calcedônia, 451, reafirma a mesma doutrina.
É importante compreender nesse processo do termo Mãe de Deus, aplicado à Virgem, que “Maria não é e nem pode ser mãe da natureza divina. Mas, por geração humana, é realmente mãe de um Filho que é Deus. Não porque seja mãe de um homem que se une a Deus, mas porque, desde o instante da sua concepção, seu Filho é pessoalmente Deus. O fato de Maria não entregar a seu Filho a natureza nem a personalidade divina em nada obscurece a profundidade e a realidade de sua maternidade. Nenhuma mãe confere a seu filho a alma e, sem embargo, é realmente mãe, não só do corpo que gera, mas de toda a pessoa. De maneira semelhante, Maria não é mãe unicamente do corpo de Jesus, mas é Mãe do Filho de Deus” (Angel L. Strada – Maria: Um Exemplo de Mulher – Ave Maria).
Como toda criança que vem a esse mundo, Cristo foi dado à luz, alimentado e cuidado pela Virgem, como toda criatura em sua dependência materna. Foi ela que “fez o Cristo falar, Maria que fez Jesus caminhar”, se relacionar com demais, introduziu na religiosidade do seu povo, nessa lenta aprendizagem que faz parte do nosso ser humano. É assim que intuímos nas palavras de Jesus, a influência dessa maternidade, presente nas suas parábolas, nesse olhar para o feminino em suas atividades, como destaca Lucas. “Para Nossa Senhora ser mãe significa ser educadora de um filho o qual, mesmo sendo Filho de Deus, nasce e cresce humanamente, e se desenvolve em sabedora e graça diante de Deus e dos homens (Lucas 2,52). Como observa muito bem um estudioso, ‘a maternidade de Maria pertence ao mistério da Encarnação. Nesse mistério, a maternidade de Nossa Senhora expressa a inserção mais perfeita do Filho de Deus na humanidade, quer dizer o que existe de mais encarnado na própria Encarnação. Nesse sentido, o título Theotókos representa o ponto mais alto da Encarnação’”  (Vitor Groppelli – Maria, a Igreja e o povo – Ave-Maria).
A maternidade divina de Maria é a base e o princípio fundamental da teologia marial. Esta na origem dos demais dogmas marianos. Todas as graças, privilégios e títulos de Maria estão fundamentados nesta verdade mariana. Ainda temos algumas outras coisas a dizer. Até o nosso próximo encontro.

E TE CHAMAVAM MARIA – 31



Em nossa busca de compormos um retrato da Virgem que nos dê mais luminosidade sobre sua presença no mistério salvífico, além do testemunho bíblico precisamos também visitar a Tradição da Igreja. Através da história da Igreja, o Espírito Santo desenvolve novos aspectos do que nos foi revelado, aprofundando o mistério. Esse desenvolvimento é um processo de vida, onde existe fases de evolução, mudanças de acenos e explicitações a partir do núcleo primeiro e central. Na busca de interpretar fielmente a Palavra de Deus e na vivência da mesma, explicitam-se, aclaram-se e iluminam-se as verdades nela contidas. Assim resumiu para nós Paulo VI, por ocasião do Concílio Vaticano II: “O que Cristo quer, nós também queremos. O que havia, permanece. O que a Igreja ensinou ao longo dos séculos, nós continuamos ensinando. Agora se tem expressado somente aquilo que simplesmente se vivia. Tem-se esclarecido o que estava incerto; agora consegue uma serena formulação o que se meditava, discutia e em parte era controvertido”.
Os dogmas da Igreja são uma expressão de sua fé, uma norma de fé para cada cristão, uma verdade que é declarada de validade universal e permanente pelo magistério infalível do Sumo Pontífice. Elas se destinam ao esclarecimento e enriquecimento da fé. Pela ação do Espírito Santo na Igreja, algumas verdades contidas nas Escrituras têm uma compreensão mais profunda e são formuladas para uma melhor pregação ou vivência da mesma. Todas elas giram em torno do mistério de Cristo e nos ajudam a mantermo-nos fiéis na fé genuína do cristianismo: “Os dogmas são como placas que indicam o caminho da nossa fé. Foram criados para ajudar a gente a se manter no rumo do Santuário vivo, que é Jesus” (CNBB - Com Maria, Rumo ao Novo Milênio, p. 81).
É no campo da doutrina mariana em que mais percebemos o desenvolvimento do dogma e onde mais percebemos o sentido da fé do povo cristão. O mistério da Virgem contido nas Sagradas Escrituras foi se revelando de modo progressivo. Desde cedo essa reflexão teológica em torno de Maria se fez sentir. Desde o século II já se fazia um paralelo entre Eva e Maria, entre Maria e Igreja, sobre a sua virgindade no que diz respeito ao parto, avançando pelo século III a toda a vida de Maria. No século IV já se escuta a expressão “mãe de Deus” e no século seguinte a reflexão em torno da ausência de pecado em Maria vai ganhando consistência. O que virá a discutir-se depois sobre a Virgem, são ressonâncias desse período histórico.
Todas essas reflexões em torno do mistério da Virgem, sua pessoa e missão, vão se desenvolvendo a ponto de se tornarem uma declaração dogmática, uma simples doutrina comum da Igreja e mesmo outros aspectos permanecerão como opinião de correntes teológicas. Nosso foco são os dogmas marianos, pelo seu caráter universal, mas isso não quer dizer que outros aspectos não venham à tona. Os dogmas marianos não fogem da Sagrada Escritura, mas buscam esclarecer e enriquecer a imagem bíblica, “proporcionando à nossa fé novas profundidades de vida e de conhecimento. Ademais disso, devemos notar que os diferentes dogmas marianos formam um conjunto, são verdades intimamente conectadas entre si. E acham-se inseridas no organismo total do mistério cristão” (Angel L. Strada – Maria: Um Exemplo de Mulher – Ave Maria).
São quatro os dogmas marianos: Maternidade Divina, Virgindade Perpétua, Imaculada Conceição e Assunção. São verdades que acolhemos, aprofundamos e vivenciamos na comunidade de fé através das devoções marianas e particularmente na liturgia. Faremos juntos esse caminho de aprofundarmos esses dogmas e assim melhor compreendermos e acolhermos o mistério de Cristo a que todos eles estão ligados.
“Ó Mãe, minha Maria! Mãe do divino amor, não posso pedir outra coisa mais agradável e mais fácil de conceder que o divino amor, concedei-o, ó minha Mãe! Minha Mãe amor! Minha Mãe, tenho fome e sede de amor, socorrei-me, sacia-me! Ó coração de Maria, frágua e instrumento de amor, inflamai-me no amor de Deus e do próximo!” (Santo Antônio Maria Claret – Autobiografia – Ave Maria).   

E TE CHAMAVAM MARIA – 30



Chegamos ao final de nossa caminhada pelos textos bíblicos das figuras inspiradoras que compõem o universo de reflexões em torno da Virgem Mãe. Tomamos como base o livro de Gianfranco Ravasi “Os Rostos de Maria na Bíblia” e algumas anotações de Angel L. Strada em seu livro “Maria: Um exemplo de Mulher”. Continuaremos o nosso itinerário através de outros autores e suas reflexões, aqui sintetizadas para compor esse mosaico que estamos construindo na tentativa de, pela contemplação do mesmo, tenhamos uma melhor compreensão de Maria no plano salvífico e de como nossa devoção mariana pode ser melhorada em sua comunhão com a fé da Igreja.
Fora desse mundo bíblico e reflexivo do magistério da Igreja encontramos muitos escritos que, de certo modo, alimentaram a devoção mariana através de imagens de grande fascínio, com alguma pitada histórica, mas também deformadas e ilusórias. É nesse terreno que encontramos os escritos apócrifos. Alguns descrevem a infância de Maria como a de Jesus, como alguém que se comporta como um adulto, como quem já sabe o que lhe espera (Pseudo-Mateus). Claro que todos esses escritos tentam preencher uma lacuna deixada pelos Evangelhos canônicos. O mais popular desses textos é certamente o Apócrifo de Tiago que remonta as reminiscências da origem de Maria ao citar seus pais (Joaquim e Ana) que entram no rol dos santos da Igreja. Focado na natividade de Maria, também nos trás uma série de pormenores do nascimento de Jesus. As celebrações da natividade de Maria e sua apresentação no templo foram inspiradas nesse texto tanto para o Oriente como para o Ocidente.
Segundo esse mesmo Protoevangelho de Tiago, Maria teria ficado no Templo até os doze anos, alimentada pelos anjos. Ao chegar o período da menstruação, para não contaminar o templo, a menina teria que deixa-lo. Para isso foi escolhido um grupo de viúvos (outros apócrifos falam de solteiros), dos bastões que estes traziam, um deveria florir como indicação de quem deveria cuidar da menina. Esse bastão é o do velho e humilde José. Assim podemos compreender algumas imagens que trazem um José já envelhecido com o Menino nos braços. Para os Orientais seria mais razoável crer que José fosse um velho e tutor de Maria a ser um jovem carpinteiro que a desposara, para resguardar a virgindade da mesma. Mas outros textos falam de um casamento com José e uma série de outras informações que podemos até vislumbrar nos filmes que tentam narrar a infância de Jesus e os primeiros anos de convivência entre Maria e José, até o anúncio do anjo Gabriel.
O mundo criativo e imaginativo dos apócrifos carrega na tinta aos descrever outros episódios da vida de Jesus, tal como a fuga para o Egito, uma infância marcada por eventos mirabolantes, mas que tem a ver com o futuro Messias. Mas um detalhe deixado de lado pelos Evangelhos canônicos e longamente descrito pelos apócrifos é o encontro de Maria com seu Filho após a ressurreição, com os apóstolos. Tratam também do seu fim terreno, do seu sepulcro e da sua elevação ao céu, exaltando a Assunção de Maria à imagem do Filho, abrindo caminho para o dogma da Assunção em 01 de novembro de 1950. Essa verdade professada pela Igreja quer refletir sobre o mistério ‘pascal’ de Maria. Trataremos dos dogmas marianos mais adiante.
Para além desse mundo de textos apócrifos que alimentou a piedade e a religiosidade popular, está uma reflexão teológica que buscamos fazer a partir dos textos bíblicos, partindo do Antigo Testamento, onde ela se encontra “profeticamente oculta” (LG 15) passando pelo novo e pela Tradição eclesial, o mais importante de tudo isso é o que encontramos no Novo Testamento e já salientado pelo Vaticano II: uma peregrina na e da fé.
“Como gostaria de ter sido sacerdote para pregar sobre a Virgem Maria! Parece que me teria bastado uma única vez para fazer compreender o meu pensamento acerca dela... Seria preciso dizer que ela vivia da fé como nós’. Era assim que santa Teresa do Menino Jesus exprimia o seu desejo de testemunhar o seu amor pela Virgem e de imediato identificava uma componente fundamental – muitas vezes menosprezada por muitos pregadores habilitados – a componente da fé” (Gianfranco Ravasi - Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus).

E TE CHAMAVAM MARIA – 29



  Num último olhar sobre os textos sagrados que fazem referência à Virgem, este nos vem do Livro do Apocalipse (12,1-4). Esse livro profundamente carregado de imagens simbólicas e enigmáticas (gênero apocalíptico), traz a luta e a história do novo povo de Deus nesse peregrinar para  o ‘novo céu e a nova terra’ (21,4) das comunidades da Ásia Menor. Composto por volta do ano 90-100, seu autor nos convida a esperança sem esquecer o presente, um otimismo que não ignora os sofrimentos. Orienta-nos para futuro, sem fazer previsões ou narrar detalhes históricos do que virá. Não pretendo me deter sobre o mesmo, já que não é nosso objetivo aqui.
  O texto que tomamos desse livro faz parte da nossa liturgia da Palavra para a Solenidade da Assunção de Maria e parte na Festa de Nossa Senhora Aparecida. Podemos ler o capítulo na íntegra para situarmo-nos nessa interpretação mariológica que se faz do mesmo. O texto parece fazer menção ao Cântico dos Cânticos (6,10) quando menciona essa figura feminina com a lua debaixo dos pés e coroada com uma coroa de doze estrelas. Aqui se vê Maria que dá à luz ao seu Menino, ao mesmo tempo que se alude à sua Assunção ao ser levada para um lugar que lhe fora preparado por Deus, lugar temporário, pois três anos e meio é a metade de sete, que seria o número de plenitude).
  Na realidade, para os estudiosos, sem descartar a menção a Maria, o autor estava pensando ou no novo Israel do qual provém Cristo, ou na própria Igreja onde Cristo nasce continuamente através da Palavra e da Eucaristia. A mulher seria o símbolo do bem e da salvação que nos vem de Deus. Está em jogo aqui também a menção da parturiente de Is 7,14 ligada à promessa do Messias. A imagem do dragão traz a imagem do mal que representa tantos os poderes terrenos quanto o próprio demônio, pois sua ação é um desafio ao Céu. O conflito é aqui estabelecido entre o Bem e o Mal, pois o varão nascido da mulher tem as qualidades messiânicas não tanto do nascimento de Belém, mas da força da Ressurreição da manhã da Páscoa, cujas dores se referem à Paixão.
  Temos a figura de Miguel, adversário declarado de Satanás, e dessa batalha que desemboca na expulsão dos anjos rebeldes. Uma voz anônima nos explica a cena mencionando a vitória de Cristo, o Cordeiro, por seu testemunho e sua paixão. Mesmo tendo anunciado essa vitória, a batalha prossegue na história entre a descendência da serpente e da mulher, mesmo que a vitória final já tenha sido declarada ser de Deus e seus eleitos. Não vou me deter no que se segue. Podemos ver que a figura da mulher do Apocalipse oscila entre a representação da Igreja, povo de Deus na terra, perseguida por Satanás e a Mãe do Messias, Maria, contra a qual se enfurece o poder das trevas que tenta aniquilar o Filho, princípio de salvação e de vitória sobre o mal.
  Na figura da mulher vestida de sol com a lua debaixo dos pés se exalta, de modo inigualável a beleza da Virgem. É dessa imagem que se inspiram as famosas esculturas e pinturas da Imaculada. Aos pés da Virgem se acrescentará a serpente do Gênesis, identificada com o dragão do Apocalipse (mais claramente identificada na imagem de N. Sra. das Graças).
  Concluo esta nossa página com as palavras de um livro litúrgico copta citado por Gianfranco Ravasi (Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus): “’Vi um sinal que apareceu no céu. É uma mulher vestida de sol: debaixo dos pés estava uma lua, e doze estrelas formavam uma coroa na cabeça. Estava grávida e gemia com as dores do parto’. Ela é Maria, o novo céu que está sobrea terra, da qual surgiu para nós o sol da justiça. De fato, o sol que a envolvia é o nosso Senhor Jesus Cristo; a lua que estava sob os pés é João Batista; as doze estrelas que formavam uma coroa na cabeça são os doze apóstolos que a circundam e a veneram. Por isso, todos os povos glorificam a Virgem, porque foi ela que gerou Deus para nós, enquanto a sua virgindade permaneceu sigilada!”.
  Na nossa próxima reflexão faremos a conclusão geral desse passeio que fizemos pela Bíblia nas figuras que remetem à figura de Maria e de seu mistério na história salvífica. Grande abraço!

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Após o episódio da Cruz, o nome ou a presença da Virgem será mencionado só mais uma vez de maneira explícita no Atos dos Apóstolos: “Todos, unânimes, eram assíduos à oração, com algumas mulheres, entre as quais Maria, a mãe de Jesus, e com os irmãos de Jesus” (1,14). Só os escritos apócrifos mencionam um possível encontro entre a Mãe e o Filho após a ressurreição: “’Não te perturbes, Maria, observa bem o meu rosto e convence-te que sou Eu, o teu filho! Eu sou o Jesus que consola a tua tristeza, Eu sou o Jesus cuja morte choraste, Eu sou o Jesus por cujo amor derramaste lágrimas. Mas agora estou vivo e consolo-te com a minha ressurreição, antes de a todos os outros. Ninguém levou o meu cadáver, mas ressuscitei por vontade do Pai, ó minha Mãe!’ Ouvindo estas palavras, o coração da Virgem encheu-se de consolação, cessou de chorar e de estar perturbada e exclamou: ‘Ressuscitaste, meu Senhor e meu Filho!... Feliz ressurreição!’ E ajoelhou-se para beijá-l’O” (Evangelho de Gamaliel (século V-VI).
Compreendemos, por esta menção que Lucas nos faz da presença de Maria entre os Apóstolos, essa continuidade que a Virgem assume como seu papel materno. Por sua vez eles a tomam consigo, nessa experiência que ela mesma fez de conduzir-se pelo Espírito Santo. Terá razão a ladainha ao chama-la de “Rainha dos Apóstolos”, a discípula perfeita de Cristo os ajudará nesse caminho de resposta e fidelidade ao Filho. Recebendo com eles o Espírito Santo, assume também seu apostolado de levar ao mundo a contínua indicação de fazermos tudo aquilo que Ele nos disser (ou nos disse ao longo do seu ministério...).
Mas antes de qualquer ação missionária da Virgem junto aos Apóstolos, está a sua presença orante. A oração é um elemento de primeira ordem no Evangelho de Lucas, cujo início se dá no Templo, durante a oração de Zacarias e se conclui mencionando o mesmo espaço: “Quanto a eles [os apóstolos], após se terem prostrado diante dele voltaram para Jerusalém, cheios de alegria, e estavam no Templo, bendizendo a Deus” (24,52-53). Assim a oração é vista pelo evangelista como algo necessariamente contínuo para vida da Igreja. Ela traz consigo o aspecto comunitário na comunhão de sentimentos e intenções. Maria torna-se um modelo de orante para a Igreja que nasce também sob a sua inspiração.
O Cenáculo onde Maria se encontra em oração com os Apóstolos e outras mulheres, traz uma referência ao Cenáculo onde foi celebrada a última Ceia. Isso tudo aponta para a realidade da Eucaristia e da proximidade da Virgem desse mesmo mistério. Mesmo sem uma menção explícita da presença de Maria na instituição, a tradição cristã não deixou de lançar seu olhar para essa estreita ligação entre o culto mariano e a Eucaristia.
Como conclusão dessa cena, transcrevo esse trecho do livro “Maria, um exemplo de mulher” (Angel L. Strada): “Maria está no meio da Igreja nascente. Está na qualidade de mãe de Jesus, amando-o nestes homens concretos que ele havia escolhido. Conhece as fraquezas e os receios desta primeira comunidade eclesial e ama-a em sua realidade concreta. Foi precisamente a esses homens medrosos que o Reino foi confiado. A pequenez dos instrumentos não assusta Maria, porque em seu seio realizou-se para sempre o desposório do Deus forte com a limitação humana. O que aconteceu na Anunciação repete-se analogamente na primeira hora da Igreja, que sempre viverá esse mistério: a santidade e o amor de Deus que se transmitem através da fragilidade humana. A presença de Maria no Cenáculo constitui solidariedade ativa com a comunidade de seu Filho. Ela é a que com maior desejo e força implora a vinda do Espírito. Na realidade, já tinha uma longa história pessoal com ele, porque sua vida está balizada por intervenções do Espírito Santo. Foi ele quem a ‘cobriu com sua sombra’ e operou nela a encarnação do Filho de Deus. Ele santificou João Batista no seio de sua mãe e plenificou com sua presença Isabel mediante a visita e saudação de Maria. O Espírito revelou ao velho Simeão a identidade de Jesus e sua missão salvadora, da mesma forma que o desígnio divino sobre Maria. Toda a sua vida se desenvolve na força do Espírito. Segundo São Paulo, os frutos da ação do Espírito são: amor, alegria, paz, bondade, fidelidade... Não é esta a descrição exata da vida de Maria, em quem o Espírito atuou sem nenhum impedimento e sobre quem se derramou generosamente seus dons? Para os apóstolos, trata-se ainda de um ‘Deus desconhecido’, para Maria já é uma realidade plenamente operante em sua vida” (pp. 65-66).

E TE CHAMAVAM MARIA – 27



“Junto à cruz de Jesus estavam, de pé, sua Mãe e a irmã de sua Mãe, Maria, mulher de Clopas, e Maria Madalena” (Jo 19,25). Recolhemo-nos diante desse breve retrato que João nos oferece e imaginamos o que não está dito sobre este momento, mas que esconde todo um sentido teológico a ser resgatado das entrelinhas. As mulheres ai citadas variam de número nos evangelhos; muitas vezes se permitia aos parentes, amigos e até inimigos da pessoa crucificada acompanhar as últimas horas do mesmo.
Sabemos que o fato de Jesus entregar Maria a João só reforça a virgindade de Maria, uma vez que não tinha outros filhos a quem confiar-se, desbaratando essa leitura que fazem os evangélicos na busca de desmerecer a figura da Mãe. Por outro lado, a entrega do discípulo à Mãe como quem entrega aos cuidados de Maria a própria Igreja ali representada pelo Apóstolo.  Houve muita discussão se esse discípulo é realmente o autor do 4º Evangelho ou seria Lázaro, a quem Jesus amava muito, ou o evangelista Marcos. O certo é que ele aparece aqui muito mais como figura do discípulo ideal, dando ao texto uma menção que ultrapassa a simples tragédia.
Jesus dirige-se à Sua Mãe chamando-a novamente ‘Mulher’. Sabemos com que solenidade Ele usa esse título e fazendo alusão, nesse final, a aquela mulher do paraíso do Gênesis, faz de Maria o novo referencial para todos que querem seguir o Filho. Inaugura-se uma nova missão materna que se expande a todos os fiéis. Ela, como o Filho, sofrendo e morrendo gera a salvação, Maria sofrendo e perdendo tudo torna-se Mãe da Igreja. Eis aqui a nossa Mãe espiritual, a quem podemos balbuciar por auxílio e até por companhia em nossa solidão. A grande Mãe sempre estará ali, de pé, ao lado do discípulo(a).
A narrativa nos diz que o discípulo a ‘acolheu consigo’ ou em sua casa. A tradição popular diz que Maria o acompanhou até a Ásia Menor, onde teria falecido em Éfeso. Mas Jerusalém continua sendo o referencial mais forte nessa tradição. Lá encontramos a basílica da Assunção. Talvez a informação deixada pelo discípulo seja tão somente expressão de comunhão de fé e amor em que viveram e viverão todos aqueles que acolhem a Igreja como mãe. Mariologia e eclesiologia se entrelaçam ao pé da cruz, nos diz o Cardeal Ravasi.
Dessas simples informações poderíamos supor o afastamento de Maria e João do calvário, mas a piedade popular lhe acrescentou a descida da cruz e a Mãe que recebe o Filho morto em seus braços, tão piedosamente expressa por Michael Ângelo em sua Pietá. No século XVIII traz consigo a devoção à Mater Dolorosa, a Virgem das Dores (15 de Setembro, após a festa da Santa Cruz), expressão plástica da profecia de Simeão onde a Virgem aparece transpassada por sete espadas, simbolizando a dor suprema. É diante desse quadro da Mãe aflita que muitas mulheres e mães se encontrarão em particulares momentos da vida.
Transcrevo um trecho do livro “Libertem a Mulher Forte” de Clarissa Pinkola Estés (Rocco), que coincidentemente estou lendo nesse período ao falar da experiência de povos latinos em sua identificação com as dores da Virgem e ao mesmo tempo no desejo de consola-la em sua dor através de antigos ritos conservados por alguns povos nesse período da Semana Santa: “Esse ritual de consolação ainda é seguido de modo significativo em muitos lugares remotos, como ritual de Sexta-feira da Paixão, o dia da tortura, crucificação e assassinato de Jesus, Deus da misericórdia e amor por todos. No ritual que conheço de rincões rurais, a grande estátua de La Nuestra Señora, a Mãe Abençoada, é descida do seu nicho, de seu altar, e posta em ‘la tierra de la gente’, ‘a terra dos seres humanos’, ‘o chão das pessoas’, que fica do lado de fora do cancelo, na nave do templo. Ali, então, ela fica em pé ou sentada. Logo muitos ‘alguéns’ terão jogado rebozo ou um xale macio em torno de seus ombros para mantê-la aquecida, e um mantilhão ou dez serão postas sobre sua cabeça, descendo pelos lados do rosto para lhe dar privacidade para chorar. Ela está ali em sua agonia, porque seu filho foi espancado literalmente quase até a morte, antes de ser pregado a dois pedaços de madeira no formato de uma pesada cruz”. Acompanhamos a Virgem nesses dias da Paixão e por ela seremos guiados à experiência do Espírito prometido que faz novas todas as coisas. Até lá!

E TE CHAMAVAM MARIA... 26



  Descemos com Jesus, Maria e os discípulos para a cidade de Cafarnaum, um dos centros da pregação de Jesus, o que nos leva a crer que José já havia falecido e por isso não é mais mencionado como pai de Jesus. A presença de Maria ao longo dessas andanças do Filho foi bastante discreta, perdida na multidão, mas consciente que o Filho já estava cuidando das coisas do seu Pai, conforme dissera aos 12 anos (cf. Lc 2,49). Mesmo assim, isso não impedia que vez ou outra sua existência fosse mencionada, como no caso da mulher anônima que elogia o Pregador e faz referências à Sua origem: “’Bem-aventurada aquela que te trouxe no seio e te amamentou! ’ Mas Jesus disse: ‘Bem-aventurados antes os que ouvem a palavra de Deus e a observam’” (cf. Lc 11,27-28).
  A referência dessa mulher na multidão se refere ao próprio mistério da maternidade, muito mais exaltado naquele tempo do que nos nossos dias. Mas Jesus nos faz reconhecer que em Maria uma outra bem-aventurança a coloca num plano superior, aquele da fé, da escuta obediente, da fidelidade cotidiana por causa da Palavra: “Maria é bem-aventurada precisamente também por isto, porque escutou a Palavra de Deus e a pôs em prática. De fato, conservou mais a verdade na sua mente do que a carne no seu seio. Cristo é verdade, Cristo é carne; Cristo é verdade na mente de Maria, Cristo é carne no seio de Maria. Conta mais aquilo que trouxe na mente do que aquilo que trouxe no seio” (Santo Agostinho, Discursos, XXV,7-8).
  Este elogio da mulher que Jesus retoma de forma mais potencializada, nos recorda também aquele momento em que a Mãe de Jesus, juntamente com seus irmãos, deseja falar com ele (Cf. Mc 3,31-35; Mt 12,46-50; Lc 8,19-21). É uma dessas palavras que parecem distanciar a Mãe do Filho, como se a vida desta não foi, desde sempre, fazer a vontade de Deus. E aqui entendemos que este afastamento só a aproxima ainda mais do Filho, pois mais uma vez o vínculo carnal é colocado em segundo plano, mas não desvinculado. Ela se torna um símbolo da verdadeira parentela com Jesus, calcada numa intimidade de escuta e obediência: “Porventura não fez a vontade do Pai a Virgem Maria, a qual acreditou em virtude da fé, concebeu em virtude da fé, e foi eleita como aquela da qual haveria de nascer a nossa salvação entre os homens, foi criada por Cristo, antes que Cristo fosse criado nela? Maria Santíssima fez certamente a vontade do Pai e por isso conta mais para Maria ter sido discípula de Cristo do que ter sido a mãe de Cristo... E quando Jesus diz ‘irmãos e irmãs’, é claro que quer falar de uma só e mesma herança. Por isso, Cristo embora sendo único, na sua misericórdia, não quis ser só, mas fez de modo que fôssemos herdeiros do Pai e seus co-herdeiros na sua própria herança” (Santo Agostinho, Discursos, XXV,7-8).
  “Aquilo que nessas passagens aparece, à primeira vista, como rejeição é, na realidade, colocação de Maria em sua verdadeira posição, sustentadora de sua grandeza e sua dignidade. Maria é bem-aventurada por sua condição de mãe física de Cristo, mas o é mais ainda por acolhê-lo com fé e segui-lo com entrega total. Pois escutar a Palavra e cumpri-la consiste em crer em Cristo e segui-lo. A Palavra de Deus é uma pessoa: Cristo, o Verbo encarnado. Drama da pregação de Jesus finca suas raízes na falta de acolhida por parte dos seus ouvintes, os quais, ‘vendo, não veem e, ouvindo, não ouvem nem entendem’. Rejeitam sua mensagem, não aceitam sua pessoa” (Angel L. Strada – Maria: um exemplo de Mulher – Ave Maria).
  Depois de passarmos brevemente estas citações da vida pública de Jesus, eis que chega a hora de nos encontrarmos com Maria e Jesus ao pé da cruz, numa contemplação particular de sua fidelidade ao projeto do Pai ao gerar seu Filho até o último momento. Por fim chega a ‘hora’ anunciada em Caná e Maria não se esquiva desse momento, pois sabe que ali também se esconde a vontade do Pai. Como discípula atenta, fez o que indicou aos outros: ‘fazei tudo o que ele vos disser’. Corramos também com a multidão que contempla esse horrendo espetáculo, mas não fiquemos a meio-caminho. Vamos com Maria até a Cruz.

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  Depois de refletirmos brevemente sobre a ida de Jesus a uma sinagoga em Nazaré, retomamos esse tempo da vida pública de Jesus, onde as dimensões da relação entre Jesus e Maria se tornam mais notórias. A maternidade física vai dando espaço a algo muito mais elevado e profundo: o vínculo da fé. “Cristo gera Maria no evangelho, cuida dela e a educa como ouvinte de sua Palavra. Cristo é filho de Maria, Maria é discípula de Cristo. Cristo se faz homem em Maria e através de Maria. Maria se torna filha de Deus em Cristo e através dele, por quem e para quem existe. O vínculo materno-filial não desaparece, aprofunda-se e transforma-se num vínculo de maior intimidade e força: a perfeita realização da vontade do Pai. O parentesco segundo a carne é assumido e elevado pelo vínculo da fé de Maria na pessoa e missão de seu Filho” (Angel L. Strada – Maria: um exemplo de Mulher – Ave Maria).
  Certamente estamos lembrados de algumas passagens evangélicas que nos deixam a impressão de uma certa rejeição de Jesus à pessoa de Maria, mas um olhar mais apurado nos permite perceber que na realidade Jesus vai colocando Maria na sua verdadeira posição. Diferentemente da multidão que cerca Jesus, que muitas vezes rejeita a sua mensagem e a sua pessoa, o acolhimento da Virgem se torna mais patente. Maria é o terreno que a semente da Palavra encontrou, um terreno totalmente fecundo, e isso só é perceptível na somatória do seu caminhar como discípula até a Cruz.
  Tudo isso só foi possível pelo cultivo da interioridade que a fez passar da estranheza dos fatos sucedidos após o anúncio do anjo a escuta da Palavra que brotou dos próprios lábios do Filho. “Maria é a Virgem da interioridade, aquela que saboreia com o coração e compreende com a mente as manifestações de amor e se encontra com os gestos básicos de Deus da Aliança que opera em sua própria vida. É a Virgem reflexiva, que detém na sua história pessoal e na do seu povo. Pode fazê-lo porque não é vítima da vertigem dos êxitos. Em seu coração reina silêncio, para escutar a Palavra de Deus, e há pureza para não confundi-la com as próprias palavras. Essa riqueza interior não a instala num mundo à parte, não a afasta da realidade, nem a confina num subjetivismo egoísta. É-lhe outorgada, pelo contrário, por uma sutil percepção das necessidades dos demais e por uma vontade decidida para a transmissão daquilo que enche a sua vida. É o testemunho ensejado pelo relato das Bodas de Caná” (Angel L. Strada – Maria: um exemplo de Mulher – Ave Maria).
  Caná fica a seis quilômetros de Nazaré, ali Jesus realiza o seu primeiro ‘sinal’, assim João indica a particular qualidade e função dos milagres de Cristo: estes apontam para um sentido e uma realidade mais profunda. Como dissemos anteriormente, a manifestação de Jesus se dá em seu caráter messiânico quando tomamos a somatória dos elementos em cena (O banquete nupcial, o Esposo, a abundância de vinho, a alegria). Ali está Maria, sob o título solene de “Mãe de Jesus”. Em todo o evangelho de João ela não se chama Maria.
  Temos um dialogo seco entre a Mãe e o Filho quando da comunicação de Maria sobre o fim do vinho na festa. A resposta de Jesus é o tipo de frase que depende muito da tonalidade em que foi pronunciada para entendermos o seu significado. Mesmo usando o termo ‘Mulher’, Jesus não estava se distanciando; em João perceberemos que é um apelativo normal utilizado por Jesus em seu diálogo com outras mulheres e particularmente com a Mãe ao pé da Cruz, a verdadeira e grande ‘hora’ em que se dará a Sua glorificação e a salvação para a humanidade. Maria sugere, como quem reza, deixando a critério do Filho o que fará, pedindo apenas um ato de obediência à vontade de Deus que ali se manifestará.  
  “A este ponto é clara a mensagem que a narração joanina das bodas de Caná nos quer transmitir através da ação de Maria: o Cristo é o ‘vinho bom’ e ‘último’, isto é, o Messias, o perfeito enviado do Pai. E é precisamente ela, a ‘mulher’ perfeita, a nova Eva, Maria, que nos apresenta Cristo na sua missão de salvação, na sua ‘hora’ solene, fonte de alegria e de libertação dos pesadelos. O centro do trecho é Cristo, mas Maria está ao lado d’Ele e, com a sua fé límpida e total, convida-nos a ‘fazer o que Ele disser’” (Gianfranco Ravasi – Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus).  Caminhemos na estrada de Jesus, junto com Maria.

E TE CHAMAVAM MARIA... 24



  Concluímos nossa narrativa sobre a infância de Jesus registrada em Mateus e Lucas. Marcos resume os aspectos da infância de Jesus numa única passagem que define Jesus “como filho de Maria” (cf. 6,1-3) quando da visita de Jesus a Nazaré. Em Mateus lemos que retornando do Egito, a Sagrada Família foi morar neste pequeno povoado (cf. Mt 2,19-23). Foi ali que ele viveu sua adolescência e juventude, os chamados ‘anos obscuros’, marcados por uma vida modesta, tendo como pai um carpinteiro. Este fato é confirmado duas vezes por Lucas quando fala do seu crescimento não só em graça e sabedoria, também em atitude de obediência a seus pais.
  De tudo isso, Maria mantinha em seu coração o registro, meditando sobre esses fatos em seu coração. E por lá ficou em seu mistério, instigando a criatividade de alguns na composição de alguns escritos sobre esses dias ocultos que chamamos de escritos apócrifos.
  Mas detendo-nos nos evangelhos, observemos essa cena narrada por Marcos, quando da visita a Nazaré e da frustrante recepção. Lucas complementa essa narrativa da Sua visita dizendo-nos que Jesus leu o livro do Profeta Isaías (cf. 4,16ss) e que seus concidadãos tiveram uma reação violenta. Aqui não temos nenhuma menção sobre a presença de Maria e sua reação aos fatos. O que nos interessa é saber que Maria é citada explicitamente como ‘Mae de Jesus’ com uma indicação de sua vida modesta, seus parentes e da profissão que aprendera com José. Para eles tudo isso é simples demais, para tamanha sabedoria que demonstra o pregador itinerante.
  Enquanto para nós a citação do ‘Filho de Maria’ é algo solene, para eles talvez soasse como uma pequena ironia para diminuir-lhe o prestígio. Falam também de seus irmãos e irmãs, que já tentamos elucidar um pouco atrás, lembrando a tradição oriental que apresenta José como um viúvo e idoso sob o qual a Virgem ficará sob tutela. Ainda que possam apenas ser primos pela parentela aproximada, permanece a afirmação sobre a Virgindade de Maria após o parto.
  “É raro que nas reflexões marianas alguém se debruce sobre o texto que nós consideramos, precisamente porque a presença de Maria é muito marginal e porque evoca uma fase silenciosa e oculta da existência do seu Filho, uma existência embrenhada na província mais remota, fora dos clamores das metrópoles e das vicissitudes importantes do império. Em casas modestas e calcinadas pelo sol, em ruelas malcheirosas, entre parentes não muito prestigiados, num cenário semelhante ao dos quadros de Chagall dedicados à vida das aldeias de hebreus russos ou da Europa central, a vida de Jesus e de sua Mãe desenrola-se na mais absoluta e normal quotidianidade, não ritmada por outras variantes que não as das estações do ano, dos nascimentos e das mortes. É este o ‘escândalo’ da Encarnação (‘e escandalizavam-se d’Ele’), em que participa também a mãe de Cristo. Na realidade, sob aquelas roupagens quotidianas oculta-se o mistério da salvação” (Gianfranco Ravasi – Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus).   
  Nestes dias em que celebramos o Natal do Senhor, contemplamos Sua manifestação aos povos pagãos (Epifania), aos hebreus (Batismo) e depois aos discípulos (Caná). Vamos continuar o nosso caminho por alguns outros textos onde a Virgem é mencionada e mergulharmos nesse mistério particular que nos chama a um constante recolhimento e aprendizado de leitura da vida, dos fatos, acontecimentos pessoais que vamos tecendo em nosso coração. Em nosso próximo encontro estaremos em Caná, junto a Maria.  
  Com o poeta Paul Claudel (1869-1955) percamo-nos na contemplação da Virgem nas imagens e ícones sagrados:

“Nada tenho para te oferecer, nada a pedir... Venho apenas, ó Mãe, para contemplar-te... contemplar o teu rosto, deixar o coração cantar na sua própria linguagem... Porque tu és bela, porque és imaculada, a mulher da Graça finalmente constituída, a criatura na sua primeira honra e no seu desabrochamento final, tal como saiu de Deus de manhã do seu original esplendor. Indizivelmente intacta porque tu és a Mãe de Jesus Cristo, que é a verdade entre os teus braços, a única esperança e o único fruto. Porque tu és a mulher, o Éden da antiga ternura esquecida... simplesmente porque existes, Mãe de Jesus Cristo, que tu sejas por nós agradecida!”