E TE CHAMAVAM MARIA... 24



  Concluímos nossa narrativa sobre a infância de Jesus registrada em Mateus e Lucas. Marcos resume os aspectos da infância de Jesus numa única passagem que define Jesus “como filho de Maria” (cf. 6,1-3) quando da visita de Jesus a Nazaré. Em Mateus lemos que retornando do Egito, a Sagrada Família foi morar neste pequeno povoado (cf. Mt 2,19-23). Foi ali que ele viveu sua adolescência e juventude, os chamados ‘anos obscuros’, marcados por uma vida modesta, tendo como pai um carpinteiro. Este fato é confirmado duas vezes por Lucas quando fala do seu crescimento não só em graça e sabedoria, também em atitude de obediência a seus pais.
  De tudo isso, Maria mantinha em seu coração o registro, meditando sobre esses fatos em seu coração. E por lá ficou em seu mistério, instigando a criatividade de alguns na composição de alguns escritos sobre esses dias ocultos que chamamos de escritos apócrifos.
  Mas detendo-nos nos evangelhos, observemos essa cena narrada por Marcos, quando da visita a Nazaré e da frustrante recepção. Lucas complementa essa narrativa da Sua visita dizendo-nos que Jesus leu o livro do Profeta Isaías (cf. 4,16ss) e que seus concidadãos tiveram uma reação violenta. Aqui não temos nenhuma menção sobre a presença de Maria e sua reação aos fatos. O que nos interessa é saber que Maria é citada explicitamente como ‘Mae de Jesus’ com uma indicação de sua vida modesta, seus parentes e da profissão que aprendera com José. Para eles tudo isso é simples demais, para tamanha sabedoria que demonstra o pregador itinerante.
  Enquanto para nós a citação do ‘Filho de Maria’ é algo solene, para eles talvez soasse como uma pequena ironia para diminuir-lhe o prestígio. Falam também de seus irmãos e irmãs, que já tentamos elucidar um pouco atrás, lembrando a tradição oriental que apresenta José como um viúvo e idoso sob o qual a Virgem ficará sob tutela. Ainda que possam apenas ser primos pela parentela aproximada, permanece a afirmação sobre a Virgindade de Maria após o parto.
  “É raro que nas reflexões marianas alguém se debruce sobre o texto que nós consideramos, precisamente porque a presença de Maria é muito marginal e porque evoca uma fase silenciosa e oculta da existência do seu Filho, uma existência embrenhada na província mais remota, fora dos clamores das metrópoles e das vicissitudes importantes do império. Em casas modestas e calcinadas pelo sol, em ruelas malcheirosas, entre parentes não muito prestigiados, num cenário semelhante ao dos quadros de Chagall dedicados à vida das aldeias de hebreus russos ou da Europa central, a vida de Jesus e de sua Mãe desenrola-se na mais absoluta e normal quotidianidade, não ritmada por outras variantes que não as das estações do ano, dos nascimentos e das mortes. É este o ‘escândalo’ da Encarnação (‘e escandalizavam-se d’Ele’), em que participa também a mãe de Cristo. Na realidade, sob aquelas roupagens quotidianas oculta-se o mistério da salvação” (Gianfranco Ravasi – Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus).   
  Nestes dias em que celebramos o Natal do Senhor, contemplamos Sua manifestação aos povos pagãos (Epifania), aos hebreus (Batismo) e depois aos discípulos (Caná). Vamos continuar o nosso caminho por alguns outros textos onde a Virgem é mencionada e mergulharmos nesse mistério particular que nos chama a um constante recolhimento e aprendizado de leitura da vida, dos fatos, acontecimentos pessoais que vamos tecendo em nosso coração. Em nosso próximo encontro estaremos em Caná, junto a Maria.  
  Com o poeta Paul Claudel (1869-1955) percamo-nos na contemplação da Virgem nas imagens e ícones sagrados:

“Nada tenho para te oferecer, nada a pedir... Venho apenas, ó Mãe, para contemplar-te... contemplar o teu rosto, deixar o coração cantar na sua própria linguagem... Porque tu és bela, porque és imaculada, a mulher da Graça finalmente constituída, a criatura na sua primeira honra e no seu desabrochamento final, tal como saiu de Deus de manhã do seu original esplendor. Indizivelmente intacta porque tu és a Mãe de Jesus Cristo, que é a verdade entre os teus braços, a única esperança e o único fruto. Porque tu és a mulher, o Éden da antiga ternura esquecida... simplesmente porque existes, Mãe de Jesus Cristo, que tu sejas por nós agradecida!”