Abandonando
o campo das comparações com personagens concretos, entramos agora, ainda no
Antigo Testamento, algumas citações que foram aplicadas à Virgem Maria. É um
modo de entendermos títulos e comparações atribuídos a Maria ao longo da
construção desse edifício devocional.
Em
nossa ladainha, um dos títulos invocados para a Virgem, a chama de “Sede da
Sabedoria”. De fato, no Antigo Testamento muitos textos identificam a sabedoria
como uma mulher, por isso a tradição mariana aplica a Maria. É claro que
tivemos aqui um longo processo de transferências ou passagens até desembocar em
Maria. A própria Sabedoria foi identificada como Cristo, ao lado de Deus no ato
criador (cf. Eclesiásticos 24) e também ao Espírito Santo, como o fez Teófilo
de Antioquia e Ireneu de Lião. Para só depois chegar à Virgem, idealizada a
partir desse lugar alto, como um trono.
O
texto mais significativo e aplicado a Maria se encontra no livro dos Provérbios
8,22-31, numa espécie de auto apresentação. “O
Senhor criou-me, como primícias das suas obras, desde o princípio, antes que
criasse alguma coisa. Desde a eternidade fui formada, desde as origens, antes
dos primórdios da terra... Eu estava com Ele como arquiteto, e era o seu
encanto, todos os dias, brincando continuamente em sua presença; brincava sobre
a superfície da Terra, e as minhas delícias é estar junto dos seres humanos”
(Pr 8,22-23.30-31). Fala-se de sua união com o Criador de modo a referir-se a
si mesma como uma emanação do próprio Criador. Conhecendo o seu íntimo, ela
exerce uma função mediadora com o mundo criado.
No
mundo simbólico que compreende o livro dos Cânticos dos Cânticos, que celebra o
amor humano, para se chegar ao amor divino. A leitura mariológica que fazemos
desse livro se aplica a pequenas partes do texto em seu aspecto simbólico que
necessita de toda uma compreensão de aspectos da Revelação e da Tradição no
contexto eclesial de todo um pensamento que foi se desenvolvendo ao longo da
história. Não nos é possível passear por todo esse mundo simbólico e suas
aplicações marianas: “Dados os limites da nossa exposição, não podemos seguir
este itinerário interpretativo, repleto de todo gênero de presenças, desde as
solenes às devocionais com degenerações petistas, mais interessantes para o do
folclore religioso do que para a história da espiritualidade. Cada
acontecimento da vida de Maria e cada seu atributo teológico são procurados no
texto do Cântico e seus símbolos” (Gianfranco Ravasi – Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus).
A
aplicação mais comum feita no Ocidente é da relação do esposo e da esposa do
Cântico, lidos como Cristo e Maria, Deus e Maria, o Espírito Santo e Maria. A
imaculada Conceição é vista a partir da citação 4,7: “Toda bela és, ó minha amada, e em ti defeito não há!”. A assunção
de Maria é entrevista na pergunta de 8,5: “Quem
é essa que sobe do deserto, encostada ao seu amado?” ou no apelo do esposo
em 2,10.13: “Levanta-te! Vem, ó minha
amada!”. E por ai vai para entendermos como muitos textos foram aplicados
ao mistério da Virgem.
“De
entre todos os símbolos do Cântico, a devoção mariana privilegiou o símbolo do
‘jardim fechado’, descrito, como se disse, com imagens exóticas e
‘paradisíacas’ no capítulo 4 do Cântico. O arquétipo que o poeta tem em mente é
o procriativo e o materno, valorizado pela presença das águas fecundantes (‘a
fonte selada’). A ideia é, pois, a de um espaço vivo e fértil, mas sobretudo
sagrado, como o manifesta a insistência sobre a alusão ao fechado e ao selado.
Fecundidade e inviolabilidade, maternidade e virgindade, vida e sacralidade
fundem-se conjuntamente e facilitam a aplicação a Maria Virgem e Mãe. Mas no
dizer original do Cântico aquele jardim ‘fechado’ encarna sobretudo a ideia de
mistério intransponível, encerrado no corpo de mulher, mistério que só pode ser
revelado por amor e dádiva, e não por conquista forçada” (Gianfranco Ravasi – Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus).
Para
nós que temos a Virgem de Aparecida como padroeira, na celebração dos 300 anos
de encontro da imagem, poderia se aplicar a apresentação que a mulher do
Cântico faz de si mesma em 1,5: “Sou de
pele negra, mas formosa”. Só na Europa há pelo menos uns 275 exemplares de
representações marianas ditas “Senhora negra”.