Nesse
caminho que fazemos chegamos ao livro dos Juízes onde uma mulher chamada Débora
exerce o papel de ‘juíza’ e ‘profetisa’ (Jz 4,4—5,31) por volta do século XII
a.C. Esta escolha de Deus vai na contramão da tradição de Israel, uma vez que a
mulher era juridicamente desprezada. Ela se torna imagem da proximidade de
Deus, que ao lado de um outro personagem feminino, Jael, dará a Israel a vitória
sobre o inimigo. Chama a nossa atenção o cântico de Débora no capítulo 5, que
exige uma leitura atenta de sua narrativa rica e ao mesmo tempo surpreendente
pela violência descrita. A ligação com a Virgem Maria tem a ver com esse modo
de Deus conceder vitórias através daqueles ou daquelas que são considerados
fracos. Algo relacionado ao canto do Magnificat que canta a certeza de que Deus
“derruba os poderosos dos seus tronos e eleva os humildes” (Lc 1,52).
Esse
modo surpreendente de Deus agir na história salvífica se repetirá em outros
personagens do Antigo Testamento (Rute, Ana, Ester, Judite) não somente
femininos. O próprio Moisés, perseguido e hesitante resistiu ao chamado divino.
Davi, o último dos irmãos, era a pessoa menos provável para a missão que Deus
iria confiar. Na luta contra o gigante Filisteu vemos claro quem
verdadeiramente luta por Israel. Um retrato do limite da criatura unido à ação
divina.
“A
consciência da sua pobreza, humildade, simplicidade, também brilha em Maria e,
todavia, como veremos, isso não significa fatalismo, inércia, quietismo. Tal
como Débora, que sabe ter uma missão de alcance histórico a cumprir, assim
também Maria está consciente de que Deus a está a introduzir num caminho único
e surpreendente. Não se trata, portanto, de uma humildade que se fecha sobre si
mesma, abandonando-se a melancolia, nostalgia ou frustrações. O teólogo
Jean-Marie Aubert, na sua obra La donna.
Antifemminismo e Critianesimo (Cittadella, Assis 1976), observou
justamente: ‘Nos desvios sofridos pelo culto mariano, encontramos a redução do
modelo de Maria à feminilidade ideal no sentido de uma exaltação de virtudes
que deveriam ser próprias da mulher: a modéstia, a abnegação, a aceitação
resignada da vontade de Deus (o fiat
de Maria), tudo coisas vantajosas aos homens. Reduzir desse modo Maria a ser um
tal modelo simplesmente feminino é o meio mais seguro para desvalorizar o seu
culto ou desviar dele as mulheres modernas’. Como veremos, ser ‘serva do
Senhor’ é, sim, a consciência do próprio limite de criatura mas unido à ação
divina e à vocação extraordinária a que se é chamado” (Gianfranco Ravasi - “Os rostos de Maria na Bíblia” - Paulus).
Débora
une em si essa dupla dimensão de fraqueza e grandeza. A alegria de Débora é a
alegria de Maria nessa vitória de Deus sobre o mal, atuando por mãos tão
frágeis. Ainda dentro do livro dos Juízes encontramos a figura de Gedeão (Jz
6—8), uma contra figura masculina de Débora, por ser um membro da família mais
pobre de Manassés é o mais pequeno de sua casa (cf. Jz 6,15), mesmo assim será
o libertador de Israel, que enfrentará o inimigo com um pequeno exército para
salientar que a vitória será de Deus. Mas o que liga a sua figura a Maria é a
chamada prova do ‘velo’. Gedeão, inseguro e hesitante tal como Moisés e
Jeremias, procura uma prova que valide a sua missão. Um velo de ovelha é
deixado ao relento. No amanhecer o velo estava impregnado de orvalho, mas ao
seu redor tudo estava seco. Gedeão quis também a contra prova: tudo ao redor
orvalhado e o velo seco (Jz 6,39). Na simbologia mariana ele torna-se imagem do
seio de Maria. Se no seio de cada mãe se realiza um prodígio, quanto maior não
é o mistério que se realiza no seio de Maria! O orvalho é símbolo da bênção de
Deus. Como outros símbolos do Antigo Testamento, este também aparece no nosso Ofício da
Imaculada: “Deus vos salve trono/ do grão Salomão./ Arca do
Concerto,/ velo de Gedeão”.[i]
Ficamos por aqui. No nosso próximo
artigo veremos outras figuras femininas do Antigo testamento. Salve Maria!
[i]
Reproduzo o que foi afirmado em nosso estudo: - Velo de Gedeão: O livro dos Juízes conta que Deus escolheu
Gedeão para salvar Israel da perseguição de seus vizinhos (Jz 6,36). Gedeão
ficou surpreso e se considerando incompetente pediu um sinal (milagre) de Deus.
Deixou um velo ao relento, uma noite caiu orvalho no velo e não na terra em
volta, na outra noite ocorreu o contrário. Foi uma coisa notável e o poeta
compara tudo de grande com Maria que sendo Virgem e Mãe foi sinal da vinda do
Messias libertador. Na liturgia do advento canta-se: ‘Nuvens chovam o Salvador,
céus mandai o orvalho’ aplicando-se ao nascimento de Jesus as palavras do
profeta Is 45,8.