A apresentação do Menino ao Templo e a purificação da
Mãe, conforme prescrevia a lei, aparece na narrativa de Lucas como uma
consequência natural da vivência da família de Jesus em sua dinâmica de fé.
Historicamente deveria situar-se antes da fuga para Egito, pois a contagem do
tempo pediria uma certa ‘urgência’ antes de tal viagem. Cronologicamente alguma
coisa não bate. Porque Lucas deixou tal evento fora de sua narrativa? Estamos
tentando acompanhar a cronologia dos fatos, mas respeitamos o fato de algumas
narrativas não estarem bem sincronizadas, pois para alguns autores, tais
narrativas se revestem de um cunho simbólico mais evidente do que uma simples
narrativa histórica.
É a primeira visita de Jesus ao Templo, carregado
por seus pais. Ele entra aí como um simples e pobre membro do povo de Deus,
levando para o sacrifício um par de pombas. A mãe, mesmo sendo a cheia de
graça, se submete as prescrições da Lei (Lv 12). “E todavia, apesar da sua
simples pobreza, a cena é delineada por Lucas como se fosse impregnada de uma
atmosfera festiva, litúrgica, hínica: o Menino Jesus é oferecido ao seu
verdadeiro Pai celeste, do qual é verdadeiramente primogênito, ao qual pertence
desde sempre; o Espírito é repetidamente apresentado enquanto atua nos dois
justos, Simeão e Ana, que fazem de espectadores ativos, ‘movendo-os’ e consolando-os;
Simão está feliz por receber a grande surpresa de Deus antes da sua morte, isto
é, ‘o ter visto o Messias de Deus’; Ana vê a sua fé orante explodir em louvor
enquanto à sua volta se apinham ‘todos os que esperam a redenção de Jerusalém’;
o pai e a mãe de Jesus estão admirados e são testemunhas de um mistério
glorioso e tremendo; e, por fim, Ele, o Menino que cresce e se robustece como
uma flor de sabedoria e de graça, enquanto sobre toda a cena esvoaça o Espírito
Santo (Lc 1,41.67; 2,25.27). A vinda de Cristo é, pois, o grande acontecimento
que sacode os corações, que assusta Herodes e, com ele, Jerusalém, mas que
exalta os justos. Um texto gnóstico do século III afirmava: ‘Quando surgiu o
Verbo, que está no coração de todos os fiéis, produziu-se entre os vasos uma
perturbação geral porque uns estavam vazios e outros cheios, uns estavam
direitos e outros tombados’” (Gianfranco Ravasi – Os Rostos de Maria na Bíblia – Paulus).
Essa narrativa de que estamos falando é o
evangelho da festa da Apresentação do Senhor, do dia 2 de fevereiro, festa de
nossa comunidade, que encerra todo o arco das festas natalinas, apesar da
distância no calendário litúrgico. Apesar
de ser uma festa do Senhor, tem uma profunda conotação mariana, pois o justo
Simeão dirige-se à Mãe na segunda parte do seu oráculo, fazendo referência a
uma espada que lhe atingirá particularmente. E daqui que vai surgir a famosa
imagem de Nossa Senhora das Dores. Essa única espada se transformará em sete,
por uma questão de plenitude simbólica: a profecia de Simão, a fuga para o
Egito, a procura de Jesus no Templo entre os doutores, a Via Sacra, a
crucifixão, a deposição da cruz, a sepultura. Tal contemplação e devoção estará
representada na imagem da Virgem cujo coração apresenta sete espadas. Estamos
no século XVII e XVIII.
Qual seria, então, o significado deste anúncio
terrível? “Maria está no centro do
combate pró e contra Cristo. Também ela tem de experimentar a rejeição e a
morte: e, todavia, enquanto perder, mais encontrará. A cena que melhor explica
o valor simbólico desta espada é a cena que vamos considerar mais à frente,
quando Maria, aos pés da cruz, perdendo o Filho, perderá tudo, e todavia tudo
reaverá tornando-se a mãe da Igreja, corpo do Cristo glorioso. A lei da espada
evangélica é a do perder para encontrar, da pobreza total para obter a
verdadeira riqueza, do abandono a Deus na fé para ser plenamente saciado,
consolado, salvo. Catarina de Sena nas suas Cartas 30 e 342 assim se dirigia a
Jesus e a Maria, à luz do oráculo de Simeão e da narração da paixão segundo
João: Ó dulcíssimo e diletíssimo Amor, aquele golpe que Tu recebeste no
coração e na alma foi o mesmo golpe que transpassou o coração da alma da tua
Mãe. O Filho era chicoteado no corpo e de modo semelhante a Mãe, pois aquela
carne era dela. E era razoável que ela se condoesse como se fosse a próprias,
porque Ele tinha recebido dela aquele corpo imaculado... Ó bem-aventurada e
amável Maria, tu nos deste a flor do amável Jesus. E quando produziu o fruto
esta doce flor? Quando foi levantado no madeiro da a santíssima cruz, porque
então recebemos a vida perfeita...”
(Gianfranco Ravasi – Os Rostos de Maria
na Bíblia – Paulus).
Continuaremos o mistério desta mesma espada na
fuga para o Egito. Grande abraço!